O ano de 2023 foi marcado por barbáries que traumatizaram famílias. Mais dois casos entram para as tristes estatísticas ligadas a feminicídio — somando 34 vítimas. Patrícia do Nascimento Feitosa, 44 anos, foi assassinada na tarde de Natal, na QNN 3 de Ceilândia Norte, pelo namorado José da Luz Bento da Conceição, 41. Na madrugada desta terça-feira (26/12), outra tragédia aconteceu, desta vez no Setor Estância Mestre d’Armas 05, em Planaltina, vitimando Michele Carvalho Magalhães, 30, assassinada a tiros.
Patrícia foi morta dentro de casa. José e a vítima teriam ido a uma festa, na noite do último domingo, quando, no local, houve um desentendimento entre o casal. A vítima ficou na comemoração, acompanhada de outras pessoas, enquanto José retornou para casa. No momento em que Patrícia retornou à residência, os dois tiveram uma nova discussão.
O caso só veio a público na manhã desta terça-feira (26/12), quando o assassino compareceu à 15ª Delegacia de Polícia (Ceilândia Centro), com cortes profundos no pescoço e nos dois pulsos. Aos agentes, José, inicialmente, não contou que havia matado a companheira, mas apenas revelou que “queria morrer”, pois havia descoberto que tinha sido traído por Patrícia. O Corpo de Bombeiros do Distrito Federal (CBMDF) foi acionado e atendeu a ocorrência na delegacia.
Desconfiados da versão, agentes da 15ª DP foram ao endereço de José. No local, os policiais encontraram o corpo de Patrícia numa poça de sangue. Depois, José confessou aos socorristas que o atendiam na delegacia que assassinou a companheira. Disse aos bombeiros que pegou uma faca na cozinha e deu vários golpes na barriga da companheira, que não resistiu e morreu no local. Eles estavam juntos há pouco mais de dois anos. Patrícia deixa seis filhos, e a polícia acredita que a discussão e a morte dela tenha ocorrido por volta das 15h de segunda-feira.
Sofrimento
O Correio conversou com a mãe de Patrícia. Alzira do Nascimento, que mora no conjunto ao lado, pediu à Justiça para que José seja condenado pela morte da filha. “Deveria existir uma lei para, quem mata mulher, o juiz não poder soltar. Ela é minha filha e quem está sentindo essa dor sou eu. A Patrícia deixou uma criança pequena. Dói muito”, desabafou. “Existe a justiça de Deus e a justiça do homem. Por causa de uma covardia, eu nunca mais vou ver a minha filha. Ela não merecia passar por isso”, disse a mãe, abalada.
Segundo Lúcia de Fátima, 40, irmã de Patrícia, a vítima nunca relatou à família sobre algum desentendimento entre os dois. “No começo, o relacionamento deles era tranquilo. Ele ajudava muito ela, a parar de beber e de usar drogas. Durante todo esse relacionamento dele, veio a ficar conturbado agora, dois meses atrás”, detalhou. “Ficamos sabendo da morte dela apenas na madrugada de hoje (terça-feira). É um baque, porque é minha irmã. Dói muito”, contou.
O assassino foi encaminhado ao Hospital de Base (HBB) para cirurgias. O acusado, apesar de não ter sido ouvido pela Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) II, foi autuado pelo crime de feminicídio e encontra-se sob escolta de equipes da Secretaria de Administração Penitenciária (Seape) para, assim que liberado do hospital, ser encaminhado ao Complexo Penitenciário da Papuda. A audiência de custódia está marcada para hoje.
Morta pelo ex
Michele, por sua vez, foi assassinada por volta das 4h20 da manhã de ontem. De acordo com informações obtidas com exclusividade pelo Correio, uma das linhas traçadas pela polícia é de que o ex-namorado da vítima, um detento que foi liberado no saidão de fim de ano, seja o autor.
A vítima tinha um relacionamento conturbado com o ex-namorado. Ele estava preso desde 2021, por tráfico de drogas, e Michele nunca teria o visitado na cadeia. A vítima teria contado a pessoas próximas que havia sido jurada de morte pelo homem. Uma outra linha de investigação é que, enquanto o ex-namorado estava preso, Michele se relacionou com um outro rapaz. Em 2022, ela teria desferido um tiro na ex-namorada dele e, por isso, está respondendo o caso em liberdade.
Um morador da rua onde o crime ocorreu, que preferiu não se identificar, contou que ouviu cinco disparos de arma de fogo e, quando levantou, por volta das 5h da manhã, viu o corpo da vítima ao lado de um Fiat Mobi Branco, cercado por policiais. A reportagem esteve no local do crime, que ainda estava com marcas de sangue no chão. O caso foi registrado como feminicídio na 16ª Delegacia de Polícia (Planaltina), mas pode mudar durante as diligências. O delegado à frente da investigação não informou mais detalhes sobre o crime.
Mulher ameaçada
Outro crime de violência contra a mulher marcou a região do Vale do Amanhecer, em Planaltina, na véspera de Natal. Após uma discussão com a companheira, um homem colocou fogo na casa onde morava com a esposa, dois filhos e dois enteados. A briga teria começado porque a mulher se recusou a passar o Natal na casa da ex-companheira do autor do incêndio.
Após a discussão, a vítima colocou as crianças na sala, onde foram dormir, e o homem foi para o quarto. Por volta das 21h, ela percebeu que o companheiro havia saído de casa pela porta dos fundos. Quando se aproximou para conversar, ele disse para a vítima voltar para casa, pois estava em chamas, momento em que ela retornou e retirou as crianças e chamou o Corpo de Bombeiros.
O autor é acusação de incêndio criminoso, com agravante por colocar a vida das crianças em risco e, mesmo assim, segue solto. Além disso, uma medida protetiva foi imposta em favor da vítima pela Justiça do DF, com base na Lei Maria da Penha, mas a mulher teme que o acusado faça algo, porque o mesmo chegou a mandar mensagens perguntando se ela quer conversar, mesmo com as proibições de contato.
Feminicídios no DF
2023 – 32*
2022 – 17
2021 – 24
2020 – 16
2019 – 28
*Os casos de ontem ainda não foram contabilizados oficialmente
Fonte: Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF)
Daniel Bernoulli, promotor de justiça do Ministério Público do DF (MPDFT)
Por que tivemos tantos casos de feminicídio no DF?
Eis a pergunta de um milhão de dólares. De um ano para cá, tivemos um aumento expressivo dessa prática criminosa e uma resposta precisa para justificar isso ainda não existe. Possivelmente esse incremento possa estar relacionado ao fato de a mulher agora conhecer mais seus direitos e procurá-los junto às instituições, o que acaba causando uma reação do companheiro agressor. É preciso, longe de retroceder, melhorar cada vez mais a garantia da segurança dessa mulher que denuncia a violência doméstica. É nisso que temos que focar.
Qual é o tipo de punição que o MPDFT costuma sugerir?
Quando o Ministério Público inicia um processo penal de feminicídio, ele costuma incluir duas, três (às vezes quatro) qualificadoras, o que aumenta, consideravelmente, as punições a esses assassinos, em caso de condenação. Não há qualquer tolerância quanto a esse ato de covardia.
Como o MPDFT trabalha nos casos de feminicídio?
A partir da notícia da ocorrência de um feminicídio, a polícia civil instaura um inquérito ou auto de prisão em flagrante e o Ministério Público tem sido célere na tramitação desse procedimento e início de uma ação penal junto ao Poder Judiciário. Casos de feminicídio são prioridade.
Como a instituição atua na prevenção, para que não evolua para a morte da mulher?
O feminicídio é um crime muito difícil de atuar preventivamente. Mesmo assim, temos investido muito em nossa estrutura material e pessoal. Criamos a Comissão de Prevenção ao Feminicídio, na tentativa de buscar entendimentos e soluções acerca desse terrível fenômeno social. Não hesitamos em manifestar, por meio de medidas protetivas, diante do menor sinal de risco à vida da mulher, na violência doméstica. Contamos com diversos mecanismos de proteção à vítima e, juntamente com as polícias e o Poder Judiciário, buscamos evitar, ao máximo, a progressão dessa violência.
Qual é a importância, para o MPDFT, da denúncia, tanto pela vítima quanto por quem sabe do ciclo de violência?
Tanto os crimes de feminicídio quanto os de violência doméstica, acontecem, em via de regra, entre quatro paredes, dificultando a produção de prova. Por isso, a palavra da vítima tem tamanha relevância nesses contextos. Quando a vítima morre, outros elementos podem ser cruciais para a elucidação dos fatos. Fizemos plenários, durante esse ano, em que a prova mais contundente partia de vizinhos que ouviram os acontecimentos do outro lado de suas paredes. A violência contra a mulher não é um problema do casal, é um problema de todos e penso que a população do DF está começando a se atentar para isso.
Por Arthur de Souza, Mariana Saraiva, Pablo Giovanni do Correio Braziliense
Foto: Carlos Vieira/CB/D.A.Press / Reprodução Correio Braziliense