A 48km do centro da capital federal, está Santo Antônio do Descoberto (GO). Fundado em 1722, no auge do ciclo do ouro do Brasil, o município prosperou com a mineração. Quase três séculos depois, o ouro ainda desperta cobiça na pequena cidade goiana, mas, agora, o garimpo deu lugar à ação de ladrões de luxo. O brilho histórico saiu de cena e ressurgiu num ciclo em que não há bateia nem enxada. O que move a operação é um “exército” de executores que viaja o país em busca de um produto valioso: joias.
Com logística, comando, financiamento e ambição, o bando conhecido como “Piratas dos Shoppings” atua como peregrinos e se apoia na impunidade. Na primeira reportagem da série “Rota dourada do crime”, o Correio revela os bastidores da maior quadrilha especializada em furtos a joalherias de shoppings do Brasil.
O grupo tem Santo Antônio como base. A maioria dos criminosos nasceu, cresceu e mora no município. Entre os 72.127 habitantes, eles optam pela discrição e, do reduto goiano, partem para viagens cuidadosamente planejadas por malhas viárias nacionais. O transporte vai desde os ônibus interestaduais até carros alugados e clonados. Só retornam para casa de dois a três meses depois de deixarem para trás um rombo milionário para empresários do ramo da joalheria.
Por três meses, o Correio mergulhou no submundo da quadrilha, traçou o perfil dos “soldados” e líderes, ouviu vítimas, conversou com forças de segurança de seis estados, além de representantes do setor de transporte e de entidades que regulam o mercado de pedras preciosas. O resultado expõe uma organização criminosa estruturada, com comando, funções definidas, hierarquia e muitos ganhos financeiros. Nesta primeira parte, detalhados a linha de gestão da quadrilha, da execução e financiamento.
O início
A quadrilha começou a agir em 2015, mas o foco inicial era eletrônicos, e não joias. Dois anos depois, a Polícia Civil do DF (PCDF) desencadeou uma megaoperação contra 34 membros do grupo. A apuração revelou que os criminosos encabeçaram e executaram, entre 2015 e 2017, 47 furtos em lojas de São Paulo, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Santa Catarina, num prejuízo de mais de R$ 2 milhões.
De 2019 a 2025, os “piratas” fizeram pelo menos 10 furtos a lojas de eletrônicos no país. Um caso emblemático ocorreu em 7 de dezembro de 2019, no Shopping Iguatemi de Santa Catarina. Quatro criminosos furtaram 134 aparelhos — relógios, tablets e celulares — avaliados em R$ 300 mil. Apenas 25 celulares foram recuperados.
Desde então, os ataques se multiplicaram, atingindo lojas da TIM e IPlace. Em uma única madrugada de 2022, dois comércios em Campo Grande sofreram prejuízo de R$ 178 mil.
A partir de 2019, houve uma virada estratégica. A análise de processos judiciais revela um refino da atuação e os integrantes concentraram-se no furto às pedras preciosas. O modus operandi segue o mesmo até hoje: um dos membros entra na loja pouco antes do fechamento, esconde-se em dutos de ventilação e sai com a mochila cheia ao amanhecer, quando o estabelecimento é reaberto.
Embora notado pela PCDF em 2017, não houve sinal de alerta por parte das autoridades, e a ausência de provas robustas impediu indiciamentos mais rigorosos. Até junho deste ano, o prejuízo deixado pela quadrilha ultrapassava R$ 26 milhões.
Pirâmide
A cada crime, os mesmos nomes aparecem repetidamente, como se os membros trabalhassem em escalas. A reportagem identificou 27 homens na função de “soldados” — os que praticam os furtos (veja abaixo). Todos têm endereços em Santo Antônio do Descoberto. A maioria são jovens de 18 a 29 anos, com ressalva aos adolescentes, também escalados eventualmente para os crimes.

As polícias ainda tentam entender por que Santo Antônio se tornou o coração da quadrilha. O que está comprovado é que os membros moram a poucos metros um do outro e saem em comboio rumo aos alvos. Segundo Jean Algarves, delegado-titular da Delegacia de Roubos e Furtos de São Luís (DRF), do Maranhão, os responsáveis por encabeçar essa prática têm amplo conhecimento sobre a estrutura interna dos shoppings. Isso se reflete na tranquilidade e no profissionalismo das ações.
Os executores estão no centro da pirâmide. “Geralmente, são mais jovens, recém-chegados no crime e, às vezes, sem antecedentes. Quem é mais velho na prática atua como olheiro, faz o levantamento do shopping-alvo e repassa as informações aos demais”, detalha. Um exemplo foi o furto a uma joalheria do Shopping Center Lapa, em Salvador, em 1º de abril deste ano. A quadrilha escalou um adolescente de 16 anos para entrar na loja. O prejuízo foi de R$ 1,9 milhão.
É comum que, ao serem abordados, os “soldados” quebrem os celulares diante dos policiais, tática para dificultar o rastreio dos financiadores.
No topo
Os financiadores estão no topo do negócio e pagam as passagens, hospedagens e ferramentas para arrombar os cofres. Também são responsáveis pelo contrato dos executores e dispersão das joias. Uma viagem interestadual do grupo, com três a quatro integrantes, pode custar entre R$ 10 e R$ 20 mil. “Eles (financiadores) também contratam os executores e, quando o furto é cometido, as joias são rapidamente enviadas para outro local. Os criminosos também deixam a cidade de imediato rumo a outro município”, descreve Jean Fiuza, titular da Delegacia de Repressão a Furtos e Roubos de Salvador (DRFR), na Bahia.
Fiuza identificou três núcleos na quadrilha: executores, financiadores e receptadores — estes últimos responsáveis por adquirir as pedras furtadas. Esse é o elo da cadeia criminosa mais difícil de identificar. Segundo o delegado, as joias furtadas são despachadas velozmente para destinos incertos. A suspeita é de que parte vá parar em lojas menores.
Rastrear os verdadeiros articuladores é o desafio maior. Enquanto os “soldados” são facilmente identificados, os cabeças operam às sombras. Em meio a esse cenário, a investigação do furto contra uma joalheria de luxo ocorrido em 3 de março de 2024, no Shopping Flamboyant, em Goiânia, representou avanço.
Na ocasião, a polícia goiana identificou e deteve Rayner Vitor Alves Gomes, um dos financiadores, em uma casa de alto padrão em Samambaia, no DF. Segundo o delegado Altair Gonçalves, chefe do Grupo de Repressão a Roubos (Garra), da Polícia Civil do Estado de Goiás (PCGO), Rayner encomendou o crime, alugou um carro e contratou três jovens para a execução. Um deles entrou na Riachuelo, escondeu-se em um tapete, esperou o fechamento das lojas e, durante a madrugada, entrou na joalheria por um buraco feito no forro. Foram levados anéis, correntes e pulseiras avaliados em R$ 744 mil.
“Nesse caso, ele (Rayner) financiou a operação. Ele forneceu o carro e recebeu as joias, mas não informou o destino. No momento da abordagem, quebrou o celular”, destacou o delegado Altair.
A polícia descobriu uma engrenagem mais sutil por trás da atuação dos envolvidos no esquema. Muitos dos “soldados” entram no esquema endividados com os investidores — seja por festas, bebidas, hospedagens oferecidas previamente. Isso os mantém presos a um ciclo criminoso.
*Na próxima reportagem da série, o Correio vai revelar o raio-x dos crimes, com foco nos estados onde a quadrilha age, o mapa da vulnerabilidade dos shoppings e o prejuízo às joalherias.
O outro lado
A reportagem ouviu os advogados de defesa dos acusados listados na reportagem. Frederico Monteiro e Rafael Ferreira defendem que os clientes não integram uma organização criminosa voltada ao furto qualificado. “Nenhuma das ações penais, houve sequer o oferecimento de denúncia por organização criminosa. As sentenças que eventualmente resultaram em condenação (ocorreram algumas absolvições), deixaram claro que se trataram de crimes isolados, com agentes distintos, sem qualquer tipo de liderança estabelecida entre eles, inexistindo a figura de uma suposta quadrilha ou organização criminosa voltada para a prática de crimes contra o patrimônio”, frisou o advogado Frederico.
Rafael Ferreira alega que a quadrilha não tem estrutura para esse tipo de crime. “São pessoas que supostamente cometeram esses crimes, mas em regiões diversos e momentos diversos.”
Por Gazeta do DF
Fonte Correio Braziliense
Foto: Maurenilson Freire/CB/D.A Press