Paridade de gênero no Poder Judiciário ainda é um desafio

Maioria na população e nas faculdades de direito, mulheres representam apenas 37% dos integrantes do Judiciário no DF. Barreiras estruturais e institucionais limitam a ascensão feminina na carreira

Segundo dados do terceiro trimestre de 2024 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres correspondem a 51,2% da população do país. No Distrito Federal, são 52,3%. Apesar disso, ainda enfrentam diversas formas de desigualdade de gênero e violência em diferentes esferas da sociedade, como o Poder Judiciário, responsável por julgar conflitos e garantir a efetivação da justiça no país.

Segundo o painel de dados de pessoal do Poder Judiciário, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), elas representam apenas 37% dos integrantes do Judiciário do Distrito Federal. E quanto mais elevado o cargo, menor a presença feminina. O sexo feminino ocupa apenas 19,77% das cadeiras nos tribunais superiores — são 25,81% entre as desembargadoras e 40,34% entre as juízas de primeiro grau.

Ao todo, são 18.849 magistrados no país, sendo que 59,52% são homens e 39,38%, mulheres, e a média do DF fica atrás de estados como o Rio Grande do Sul (45,11%), Bahia (46,34%) e Rio de Janeiro (48,67%), que apresentam maior participação feminina no sistema de Justiça. 

“Teto de vidro”

Na visão da juíza da 5ª Vara de Entorpecentes do Distrito Federal e da 1ª Zona Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral, Rejane Jungbluth Suxberger, essa disparidade reflete uma desigualdade histórica no acesso das mulheres aos espaços de poder e decisão. “Embora sejamos maioria entre os estudantes de direito, ainda enfrentamos barreiras estruturais que dificultam nossa ascensão nas carreiras jurídicas, especialmente nos cargos de liderança e maior prestígio”, lamenta.

A magistrada explica que os dados evidenciam um fenômeno conhecido como “teto de vidro”: as mulheres ingressam no sistema, mas têm mais dificuldade de avançar nas posições hierárquicas. Segundo ela, isso decorre de diversos fatores — da sobrecarga com tarefas domésticas e de cuidado, que ainda recaem majoritariamente sobre as mulheres, até práticas institucionais que naturalizam a exclusão ou minimizam o mérito e a competência feminina.

“Além disso, a cultura jurídica tradicional ainda é marcada por uma lógica masculina, de disponibilidade absoluta e de um modelo de sucesso incompatível com a conciliação entre vida profissional e pessoal, especialmente para quem é mãe”, declara Rejane. “É fundamental repensar esses modelos e construir instituições mais igualitárias, inclusivas e sensíveis às diversas experiências de ser mulher no direito”, completa.

A juíza destaca que promover a equidade de gênero no Judiciário não é apenas uma questão de justiça interna, mas também de legitimidade democrática. “Quanto mais representativo for o sistema de Justiça, mais capaz ele será de compreender, julgar e transformar a realidade social com empatia, técnica e compromisso com os direitos fundamentais”, afirma.

Inspiração

A desembargadora federal Candice Jobim concorda com a urgência da igualdade. “A composição do Poder Judiciário precisa refletir melhor a sociedade que ele serve, não só em termos de gênero, mas também de raça, origem social e tantas outras dimensões”, aponta. “Só assim, será possível garantir uma Justiça verdadeiramente plural, empática e democrática”, completa.

Demonstrando a força da inspiração feminina, Candice decidiu seguir carreira no mundo jurídico motivada pelo exemplo de sua mãe, Terezinha Silvia Galvão. “Desde a infância, eu sonhava em atuar no Ministério Público, inspirada pela trajetória da minha mãe, que foi procuradora de Justiça no Acre e no DF”, conta. No entanto, ela brinca: “Acredito que não somos nós que escolhemos o concurso, mas, sim, o concurso que escolhe a gente. Quando abri o edital da prova para juiz federal da 1ª Região, senti no meu coração que aquela era a minha chance”.

Após ser aprovada em diversos concursos e ter trilhado outras carreiras, Candice conquistou a aprovação e tomou posse em 2005. “Fui inicialmente lotada na 7ª Vara Federal e, depois, na 2ª Vara, onde permaneci por muitos anos. Mais tarde, fui titularizada em Belém”, relembra. Na visão da desembargadora, a forma como a titularização é feita pode ser um fator que distancia as mulheres dos cargos mais altos.

“Durante minha carreira, abri mão de me titularizar várias vezes, pois, como mulher, sabia que isso significaria um grande sacrifício pessoal, como deixar a família e me mudar para cidades menores, com menos infraestrutura”, explica.

Ela ressalta que chegou a perder cerca de 50 a 60 colocações porque não possuía estrutura — inclusive emocional — para deixar o filho e o marido em Brasília e se mudar sozinha para o interior. “Para os homens, isso costuma ser muito mais simples. Eles deixam os filhos com a esposa na capital e ficam indo e vindo. No meu caso, essa opção não era viável”, conta.

Além disso, Candice destaca as dificuldades adicionais que todas as mulheres enfrentam em ambientes profissionais. “Quando um homem fala, todos escutam. Mas quando é uma mulher que se manifesta, ela frequentemente é interrompida ou ignorada”, observa.

Ela relata que essa realidade ficou especialmente clara durante sua atuação como conselheira no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sua primeira experiência em um colegiado de maior porte. “Após algumas sessões, comecei a receber mensagens de servidores da casa se solidarizando comigo. Diziam ter notado as interrupções enquanto eu falava ou apresentava meu voto”, relembra.

Sentimento de culpa

Assim como Candice, a juíza titular da Vara Cível, de Família, Órfãos e Sucessões do Núcleo Bandeirante (atualmente convocada para atuar no Supremo Tribunal Federal), Caroline Lima também sonhava com a carreira no Ministério Público. No entanto, foi aprovada no concurso para juíza e acabou se apaixonando pela magistratura. “Hoje, não consigo me imaginar em outro lugar”, celebra.

Para Caroline, a vivência feminina é repleta de empecilhos, e no Judiciário não é diferente. “Costumo dizer que, para a mulher, tudo é mais difícil. Mesmo quando tudo parece estar indo bem, sem grandes obstáculos, carregamos desde sempre responsabilidades extras sobre o nosso corpo, a nossa imagem, as nossas escolhas. Somos constantemente cobradas, especialmente em relação à família e à maternidade”, aponta.

Ela destaca que a mulher que se ausenta de casa por motivos profissionais sofre mais do que o homem. “Sempre nos sentimos culpadas. Ficar longe dos filhos é um desafio imposto pela magistratura, e a maternidade ainda recai quase exclusivamente sobre nós”, lamenta. Ela completa afirmando que o acúmulo de responsabilidades é um dos principais fatores que dificultam o avanço na carreira.

A juíza também ressalta que, para uma mulher ocupar um espaço de poder, é preciso ser excelente. “Precisamos provar nossa competência o tempo todo. Já o homem, muitas vezes, basta ser mediano e isso é visto como suficiente. O espaço é, por padrão, dele. A mulher, por outro lado, está sempre tendo que se justificar, se afirmar e mostrar que merece estar ali. Temos que demonstrar constantemente que somos capazes, que estamos à altura”, conclui.

Mecanismos de correção

Em 2023, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução nº 525/2023, com o objetivo de promover uma ação afirmativa de gênero no acesso das magistradas aos tribunais de segundo grau. A norma determina que as promoções por merecimento nos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais devem observar a paridade de gênero.

Na prática, isso significa que as listas de juízes e juízas indicados para vagas de desembargador ou desembargadora devem garantir a alternância entre homens e mulheres, assegurando maior representatividade feminina nos espaços de poder do Judiciário.

A ideia central é corrigir, por meio de mecanismos objetivos, um desequilíbrio histórico e reforçar a importância de se promover um Judiciário mais diverso e representativo. “Mais do que uma medida pontual, essa resolução sinaliza um compromisso institucional com a paridade e com a valorização da diversidade. Não se trata de privilégio, mas de justiça histórica. O que a norma faz é abrir caminhos que, por muito tempo, foram fechados ou estreitados”, destaca a juíza Rejane Jungbluth Suxberger.

Em concordância, a juíza Caroline Lima afirma: “É importante dizer que a resolução não é um ‘benefício’ para as mulheres, e, sim, um benefício para a sociedade”. De acordo com a magistrada, o Judiciário, que decide os problemas da sociedade, precisa representar essa sociedade.

“A pergunta que devemos nos fazer é: sem mulheres nesses espaços, sem diversidade, será que estamos verdadeiramente representados? Essa discussão não pode ser tratada como privilégio ou favorecimento. Trata-se de garantir legitimidade, de fazer com que a Justiça seja um espelho fiel da sociedade”, destaca.

A resolução já começa a dar seus primeiros frutos. Um exemplo, ressaltado pela desembargadora Candice Jobim, é o da juíza federal Gisele Chaves Sampaio Alcântara, nomeada pela Presidência da República como nova desembargadora federal do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5).

“Nessa região, nunca antes uma juíza havia chegado ao tribunal. Até o ano passado. É quase inacreditável pensar que, em uma carreira tão extensa como a da magistratura, nenhuma mulher tenha sido considerada apta para ocupar um cargo no segundo grau. Foi apenas após a determinação do CNJ que essa realidade começou a mudar”, celebra.

Por Gazeta do DF

Fonte Correio Braziliense       

Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press