Até pouco tempo, o Cerrado parecia improvável para a vitivinicultura. Mas a combinação entre produtores ousados, pesquisa aplicada e inovação tecnológica transformou o cenário: estudos sobre manejo, irrigação e inversão da poda das videiras permitiram colheitas estratégicas e uvas de qualidade. Só em 2024, os 11 produtores do Distrito Federal colheram 366 toneladas de uvas viníferas em 40,8 mil hectares, gerando
R$ 6,588 milhões em valor bruto da produção, segundo relatório da Emater.
O engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Uva e Vinho Giuliano Elias Pereira explica que “os vinhos do DF vêm apresentando um elevado padrão de qualidade, tipicidade e identidade, fazendo com que consumidores e especialistas do mundo da uva e do vinho estejam admirados com esse potencial”. Ele destaca que fatores como altitude acima de mil metros, clima seco e noites frias favorecem uma maturação lenta das uvas, essencial para a síntese dos compostos aromáticos e fenólicos responsáveis por aroma, cor e corpo dos vinhos. “Mesmo videiras jovens, com dois a cinco anos, já produzem uvas com elevado potencial enológico”, acrescenta. A Embrapa planeja um projeto de pesquisa para validar tecnologias vitivinícolas já desenvolvidas e aprimorar o sistema de produção de vinhos de inverno no Distrito Federal, com o objetivo de fortalecer e expandir a cadeia produtiva local.
Uma pesquisa coordenada por Rafael Lavrador Sant Anna, do Instituto Federal de Brasília (IFB), em parceria com Caroline Dani, da Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-RS), e Fernanda Spinelli, do Laboratório de Referência Enológica (Laren), revelou que os vinhos produzidos no DF superam a qualidade de rótulos consagrados da França, Itália, Espanha, Austrália, Argentina e África do Sul. O estudo, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), analisou as safras de 2022 e 2023 da variedade Syrah, símbolo da produção local, com foco em compostos fenólicos, antioxidantes e resveratrol.
Segundo a pesquisa, a adaptação da uva Syrah ao solo do DF, aliada à técnica da dupla poda favorece o amadurecimento ideal, garantindo vinhos com cor marcante, tipicidade varietal e alta qualidade técnico-científica.
A técnica da dupla poda — que inverte o ciclo da videira, com poda de formação no verão e de produção no outono, permitindo colheita de uvas no inverno, quando o clima é seco e frio — só se tornou viável no Distrito Federal graças ao estudo desenvolvido pela Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), que testou manejo, clima, solo e variedades até definir o método ideal. O resultado vai além da agricultura: a ciência impulsionou a economia trazendo potencial para reconhecimento internacional e futura Indicação Geográfica (IG).
“A IG agrega valor e protege a autenticidade de produtos vinculados a um território, reconhece a reputação e a qualidade diferenciada do produto. Quando uma região conquista o selo, há aumento do valor agregado, fortalecimento da reputação no mercado nacional e internacional, além de estímulo à organização produtiva e à promoção turística”, explica a analista técnica do Sebrae Laíse Rabêlo Cabral. Ela acrescenta que, embora a IG seja uma possibilidade natural desse esforço coletivo, “o foco está em construir uma base sólida, com empreendimentos inovadores, sustentáveis e comprometidos com a excelência”.
Sonhos que se tornam realidade
A vinícola Villa Triacca, no PAD-DF, nasceu da necessidade de diversificação da propriedade familiar. “Já tinha o sonho de fazer um vinho aqui, mas na minha cabeça era um vinho colonial. Nem passava pela minha cabeça elaborar um vinho fino. Mas, quando começamos a conhecer a técnica da dupla poda, percebemos que era possível inverter o ciclo da videira e criar um novo perfil de vinhos”, conta Ronaldo Triacca.
Hoje, a vinícola tem 8,5 hectares plantados, sendo seis em produção, e colhe entre 8 e 10 mil quilos de uvas por hectare, transformando-as em cerca de 30 mil garrafas por ano. Além da produção, a vinícola acumula mais de 10 premiações regionais, nacionais e internacionais, consolidando-se como referência no enoturismo do DF.
O Vinhedo Lacustre, no Lago Norte, também nasceu de um sonho e começou em 1996 como produção artesanal e limitada ao vinho colonial. Com o tempo, adotou a dupla poda e técnicas de manejo adaptadas ao Cerrado, permitindo colher uvas durante o inverno. Hoje, mantém cerca de 1 hectare de vinhedo, produzindo aproximadamente 8 mil quilos de uvas por safra, convertidos em 5 mil garrafas de vinho. “Fazer vinho é difícil, sujeito a intempéries e pragas, mas extremamente recompensador. Todos os vitivinicultores têm orgulho do seu vinho”, diz Marcos Ritter, proprietário.
Enoturismo
Com a disseminação da pesquisa e o desenvolvimento tecnológico da vinicultura, o enoturismo no DF vem ganhando destaque ao integrar natureza, gastronomia e cultura local à experiência turística. A Vinícola Brasília, fundada em 2019, reúne os 10 vinhedos e famílias, além da própria marca, em um modelo de sociedade que privilegia a cooperação e preserva o terroir (características naturais) de cada propriedade. “Implantar cultura nova em um lugar novo é cheio de desafios, mas a curva de aprendizado do grupo é muito rápida, porque compartilhamos erros, acertos e soluções”, afirma Isabella Bonato, sócia e diretora financeira da vinícola. O grupo acumula mais de 60 prêmios nacionais e internacionais e busca transformar Brasília em um polo de enoturismo e produção de vinho de alta qualidade.
Para o secretário de Turismo, Cristiano Araújo, a iniciativa ajuda a ampliar a percepção turística da capital. “Brasília sempre foi reconhecida pelo turismo cívico e arquitetônico, e agora queremos mostrar que o DF também é destino de experiências. O enoturismo une natureza, gastronomia e cultura social, e a ciência aplicada garante qualidade e autenticidade aos visitantes”, explica. A Rota das Uvas, lançada em 2024, oferece percurso sinalizado e infraestrutura adequada, conectando vinícolas, propriedades rurais e atrativos locais, proporcionando ao turista uma experiência autêntica com paisagens singulares, vegetação nativa e gastronomia do Cerrado.
Vinícolas do Cerrado
- Casa Vitor
- Ercoara
- Horus
- Marchese
- Miro
- Monte Alvor
- Oma Sena
- Alto Cerrado
- Villa Triacca
- Vinhedo Lacustre
- Vinícola Brasília
Por Gazeta do DF
Fonte Correio Braziliense
Foto: Divulgação













