A dor, quando compartilhada com propósito, pode florescer em força. É dessa transformação que nasce Marias, livro da fotógrafa e jornalista Ísis Dantas, resultado do projeto Marias da Penha, uma iniciativa que, desde 2019, utiliza a fotografia como ferramenta terapêutica para ajudar mulheres que romperam o ciclo da violência a se enxergarem novamente, com dignidade, beleza e coragem.
O livro, que será lançado com uma exposição nesta terça-feira (21/10), às 14h30, na Câmara Legislativa do Distrito Federal, reúne ensaios e histórias de 10 mulheres que decidiram transformar a dor em potência. A mostra apresenta 43 quadros, quatro retratos individuais de cada participante e três fotos coletivas.
Cada imagem carrega um relato, uma vivência e uma esperança, explica Ísis. “O projeto surgiu porque eu também fui vítima de violência. Sofri violência psicológica em um relacionamento, e em outros dois episódios, violência sexual. Eu queria ajudar outras mulheres que passaram pelo que eu passei a se enxergarem novamente, mais bonitas, mais fortes”, conta.
A fotografia, nesse contexto, tornou-se um instrumento de cura. Nos ensaios, o olhar de Ísis não busca esconder marcas, mas revelar a força por trás delas. “Essas mulheres se permitem serem vistas como são. A fotografia se torna uma forma de ressignificar a dor, de transformar aquilo que antes as feriu em algo que agora inspira outras mulheres a romperem o silêncio e o medo”, explica.
O projeto começou em 2019, foi interrompido durante a pandemia e, com o tempo, retomou força. Agora, ganha forma impressa e espaço físico, saindo das redes sociais para ocupar também um ambiente político, um gesto simbólico, segundo Ísis, em um país onde a violência de gênero ainda é uma ferida aberta.
Os dados confirmam essa urgência: em 2023, 1.467 mulheres foram mortas no Brasil apenas por serem mulheres, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. No Distrito Federal, o número de feminicídios cresceu 73% em relação ao ano anterior. Até junho de 2025, 13 mulheres já haviam sido assassinadas em razão de gênero. “Essas histórias precisam ocupar todos os espaços, inclusive, os de decisão pública. É uma questão social, política e humana”, destaca Ísis.
No livro, cada mulher retratada ganha também uma ilustração de seu rosto. O objetivo, segundo a fotógrafa, foi dar leveza a um tema tão duro, sem apagar sua complexidade. “A gente quis trazer beleza, cor e delicadeza, porque falar de violência contra a mulher também pode ser falar de vida — da vida que continua, da força que se reconstrói.”
Elke Pimentel, de 44 anos, moradora de Planaltina (DF), é uma das 10 mulheres retratadas no livro Marias. Ela conta que aceitar o convite foi um ato de coragem e reconstrução pessoal. “Eu nunca apanhei, nunca fui agredida fisicamente. Mas vivia algo muito conflituoso e difícil de ser entendido”, relata. Para Elke, participar do projeto foi uma forma de transformar dor em voz e ajudar outras mulheres a identificarem sinais de abuso emocional. “Antes de viver isso, eu mesma julgava quem perdoava agressões e traições. Hoje entendo o quanto é complexo”, completa.
Durante anos, Elke viveu um relacionamento marcado pelo controle psicológico e pela manipulação. “As pessoas achavam que eu estava numa situação confortável, sonhada por muita gente. Mas eu era dirigida, manipulada. A pessoa tinha ganchos psicológicos de me manter programada até mesmo à distância”, relembra. O apoio da família foi fundamental para que ela conseguisse romper o ciclo. “Esse tipo de violência pega a gente pelo sentimento. A gente ama de forma tão pura que demora a perceber o abuso”, afirma.
Participar de Marias foi, segundo ela, uma experiência transformadora. “Me ver bonita naquele ensaio, dona da minha vontade, foi libertador. Se eu ainda estivesse naquela relação, jamais teria vivido isso”, diz. Hoje, Elke se reconhece como uma mulher fortalecida, palestrante e atuante na área da comunicação. “Aquela mulher que sofreu ainda sou eu, mas hoje me orgulho da minha força. A gente se permite viver, mas também é capaz de se reerguer”, resume. Mesmo após tudo o que viveu, ela mantém a esperança no amor e reforça a importância da união feminina: “Somos mulheres unidas contra a violência. E isso muda tudo.”
“As fotos registraram um recomeço”, assim Thais Ribeiro dos Santos Dias, 34, fala sobre processo de cura após participar do projeto Marias. Ao aceitar compartilhar sua história, enfrentou memórias que por muito tempo manteve em silêncio. “Guardei por longos anos essa parte da minha vida e escolhi não compartilhar com ninguém, o que fez o processo ser mais difícil”, conta.
A enfermeira viveu um relacionamento abusivo e, mesmo após o rompimento, carregou as marcas invisíveis da violência. “Elas minaram minha autoestima, minha autoconfiança e a forma como eu me enxergava como mulher. Eu me perdi de mim”, relata. Foi diante das lentes do projeto que ela começou a se reencontrar.
O ensaio fotográfico, mais do que um registro estético, representou um ato simbólico de libertação. “O simples ato de tirar fotos, de me colocar diante de uma câmera, se tornou um exercício de cura. A cada clique, eu me via reencontrando uma parte de mim que tinha sido calada”, diz.
Para Thais, as imagens revelaram não apenas o rosto de uma mulher, mas o nascimento de uma nova versão de si mesma. “As fotos mostraram uma mulher que aprendeu a se olhar com ternura, que aceitou suas cicatrizes como símbolos de força e que entendeu que ser vulnerável também é um ato de coragem”, afirma.
Hoje, ao revisitar as fotos, ela não vê mais a dor, mas a superação. “O Marias me devolveu algo que eu pensei ter perdido para sempre: a capacidade de me reconhecer e me amar por inteira. Quando olho para as fotos, vejo a potência e o orgulho de ter transformado uma história de sofrimento em uma história de voz e esperança.”
Com o desejo de que outras mulheres também encontrem força em suas trajetórias, Thais deixa um recado: “Espero que o meu relato inspire outras mulheres a acreditarem que existe vida depois da violência. Uma vida mais leve, mais livre e, acima de tudo, mais verdadeira.”
Lançamento
O lançamento de Marias ocorre no mês que também marca o Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, celebrado no último dia 10. Para Ísis, a data reforça o compromisso coletivo com a causa. “A mudança real só vai acontecer por meio da educação, de uma educação não sexista, que forme novas gerações capazes de reconhecer e combater as violências de gênero desde cedo.”
Mas o maior retorno, para Ísis, vem do impacto pessoal das participantes. “O que eu ganho com esse trabalho é ver a transformação na vida delas. Mulheres que nunca haviam contado suas histórias conseguiram falar pela primeira vez. Algumas viveram cárcere privado e a própria família vai conhecer a história agora, no lançamento. Isso é muito forte.”
“Eu busquei com esse trabalho, além de ajudar essas mulheres no processo de cura, me curar também. E quero que esse livro ganhe o mundo, para que outras mulheres vejam que é possível recomeçar”, finaliza a fotógrafa.
Por Gazeta do DF
Fonte Correio Braziliense
Foto: Isis Dantas/Divulgação