Livro alemão diz que criança brasileira não estuda e procura comida no lixo

Trecho preconceituoso de publicação didática utilizada em escolas da Alemanha foi repudiado pela Embaixada do Brasil em Berlim e gerou reações na internet. Editora assumiu responsabilidade e disponibilizou atualização da obra

A Embaixada do Brasil em Berlim publicou nesta quinta-feira (13/2) uma nota em que repudia um trecho de um “livro pretensamente didático” alemão que reforça preconceitos e estereótipos acerca do povo brasileiro. Na publicação em questão, uma criança do Rio de Janeiro é descrita como alguém que não estuda, se alimenta de que procura no lixo e sonha em ser jogador de futebol. 

Em comunicado publicado no Instagram, a editora Mildenberger — responsável pelo ABC der Tiere – Sprachbuch 4 (no português, ABC dos animais – livro de linguagens 4), em uso em escolas da Alemanha — assume a responsabilidade pelo trecho preconceituoso e anuncia que nova página que atualiza a anterior está disponível para download. 

O conteúdo original traz a apresentação de um personagem fictício de nome Marco. “Olá, meu nome é Marco”, diz a fala dele no livro. “Eu moro no Rio de Janeiro/Brasil. Eu não vou à escola. Pela manhã, procuro por restos de comida em latas de lixo. Eu quero ser um jogador profissional de futebol.” 

Segundo a representação brasileira na capital alemã, a injustiça é um grave problema no Brasil, mas “vem sendo enfrentado por sucessivos governos brasileiros ao longo das últimas décadas” e, portanto, a taxa de escolarização de crianças entre 6 e 14 anos, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2023, chega a 99,4%. 

Assim, reforça a embaixada, “os esforços empreendidos para garantir que crianças tenham acesso adequado à educação e saúde são reconhecidos como referência para outros países em desenvolvimento pelo Banco Mundial, pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) e pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura)”. 

Além disso, informa que a gestão do presidente Lula atribui grande relevância à educação e à fome desde o primeiro mandato. “A implementação de grande número de políticas públicas de longo prazo (como os programas ‘Bolsa Família’, ‘Criança Alfabetizada’, ‘Escola em Tempo Integral’ e ‘Proinfância’) tem permitido significativos avanços no acesso à educação de qualidade, na luta contra a pobreza e o combate à fome.”

O programa de merenda escolar, inclusive, “tem sido mencionado como referência pelas competentes autoridades do governo alemão”; e o Bolsa Família realiza “acompanhamento do estado nutricional para crianças menores de sete anos, além de frequência escolar mínima para crianças e adolescentes de 4 a 18 anos”. 

As informações trazidas pela embaixada, que diz lamentar “a abordagem insensível e pouco informada da editora Mildenberger no livro em questão”, desmentem o estereótipo propagado pela obra utilizada nas escolas alemãs. “Para além da dificuldade em entender como texto dessa natureza possa ter a pretensão de ser didático, preocupa o impacto em crianças de sua exposição a estereótipos e preconceitos sobre outros países”, reforça. 

Na página atualizada, disponibilizada pela editora nesta quinta após a repercussão negativa, o personagem Marco tem nova apresentação. “Olá, meu nome é Marco. Eu moro no Rio de Janeiro/Brasil. Minha disciplina favorita é ‘esportes’. Eu gosto de jogar futebol com outras crianças. Meu sonho é me tornar um jogador profissional de futebol.” 

“Nós assumimos a responsabilidade”, diz a manifestação publicada pela empresa no Instagram. “Recebemos feedback válido sobre a retratação de uma criança brasileira em um de nossos livros escolares. Nunca foi nossa intenção reforçar estereótipos negativos ou transmitir uma representação unilateral. Lamentamos que isto tenha acontecido.” 

A editora pede “sinceras desculpas à comunidade brasileira e a todos os leitores afetados” e afirma que, além da página atualizada e disponibilizada de forma imediata, vai rever todo o material. “Nosso objetivo é capacitar as crianças na abertura e respeito por um mundo diversificado e culturas diferentes”, informa. “Agradecemos as dicas e empenho — porque somente através do diálogo podemos aprender e melhorar juntos.” 

Nos comentários do comunicado da editora Mildenberger, relatos de brasileiros criticaram a empresa. “Sou médico e nasci pobre no Rio de Janeiro”, escreve João Paulo Canela, que tem mais de 106 mil seguidores na rede social. “Sempre estudei em faculdades públicas. Meus primeiros oito anos de estudo foram na Escola Municipal Friendreich, localizada no Complexo do Estádio Maracanã. O nome da escola homenageia o jogador Arthur Friendreich, filho de um alemão com uma garota afro-brasileira. Sempre estudamos muito, e agradeço a essa escola pública, que me proporcionou a base para ser aprovada, primeiramente, no curso de medicina da Universidade Federal Fluminense. Ser uma pobre criança brasileira pode levar a muitos outros caminhos além dos descritos no estereótipo do manual desta editora.” 

Por Lara Perpétuo do Correio Braziliense

Foto: Reprodução/’ABC der Tiere – Sprachbuch 4 / Reprodução Correio Braziliense