Mulheres vítimas de violência mudam o padrão de visitas às unidades básicas de saúde 92 dias antes do agravamento do caso, ou seja, de serem feridas gravemente ou mortas. Elas passam a buscar mais atendimento médico, queixam-se mais de problemas relacionados à saúde mental e podem apresentar sinais de agressão, por exemplo.
Os dados vêm de um estudo pioneiro feito no Recife (PE) pela Vital Strategies, organização internacional de saúde pública, em parceria com a FrameNet Brasil, laboratório de linguística computacional da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), que analisou registros médicos de 13 mil mulheres vítimas de violência no município no período de dez anos.
O projeto usou análise semântica e inteligência artificial para cruzar informações do Sinan (Sistema de Informações de Agravos de Notificação) com dados do prontuário eletrônico de pacientes atendidas na atenção primária à saúde para identificar precocemente sinais de violência.
O Sinan é gerenciado pelo Ministério da Saúde e secretárias estaduais e municipais de saúde. Casos de violência contra a mulher são de notificação compulsória no sistema.
Os pesquisadores encontraram, por exemplo, um caso em que a morte da mulher foi classificada como acidente no Sinan e no prontuário médico constava que a vítima tinha sido arremessada de um caminhão pelo parceiro.
A proposta é que esses dados sirvam para subsidiar ações tanto de redução da subnotificação da violência contra mulher no sistema de saúde quanto de prevenção do agravamento dos casos.
De acordo com o estudo, entre as vítimas de feminicídio identificadas no cruzamento entre os bancos de dados de violência e mortalidade, em mais de 60% dos casos o homicídio aconteceu 30 dias após uma notificação de violência no Sinan.
Segundo a pesquisadora Sofia Reinach, diretora adjunta do Programa de Prevenção de Violências da Vital Strategies, o projeto buscou entender o que acontece antes dessas notificações mais graves de violência, que aparecem nos hospitais, prontos-socorros e delegacias de polícia.
“A gente sabe que a violência contra a mulher acontece em um ciclo que vai se agravando e que é a atenção básica que atende essas mulheres de forma rotineira. Então, a gente precisa entender o que acontece na atenção básica em relação à violência”, explica.
Análises anteriores já mostraram que apenas um quinto (19,5%) das notificações de violência contra a mulher no Sinan é feita pela atenção básica. A maioria (80%) é realizada pelos hospitais e prontos-socorros.
“Uma notificação tardia é uma oportunidade perdida em agir para evitar a hospitalização ou morte daquela mulher”, afirma.
Um outro estudo feito pela Vital Strategies em Goiânia (GO) mostrou que entre as mulheres que tiveram casos de violência notificados e encaminhados para algum serviço o risco de morte caiu em média 60%.
“As mulheres estão falando sobre a violência nas consultas, e a gente quer criar ferramentas que ajudem os profissionais na identificação dessas vítimas o mais cedo possível para prevenir o agravamento”, diz Reinach.
De acordo com Tiago Torrent, coordenador do FrameNet Brasi, todos os dados de prontuários foram anonimizados para a realização do estudo. “Não é só apagar o nome, a idade e o endereço, mas outros dados sensíveis que, por uma questão de privacidade, a gente não pode usar.”
A partir de relatos de crises de ansiedade e de choro descontrolado, por exemplo, foram gerados 6.000 conjuntos de anotações que possibilitaram treinar a inteligência artificial e, por fim, validar a ferramenta.
O trabalho também comparou essas vítimas com outras mulheres que não sofreram violência. Entre essas últimas, os principais motivos que as levaram procurar a atenção básica foram condições como hipertensão e diabetes.
“Quando a gente olha para o prontuário das vítimas de violência, essas doenças estão, em média, três vezes menos frequente. Medicamentos para o controle de diabetes e hipertensão também são menos prescritos para essas mulheres.”
E por que isso acontece? “Não tem razão alguma para supor que essas mulheres têm menos doenças crônicas. Ocorre que elas estão buscando ajuda por outro motivo [a violência], e as outras doenças estão sumindo dos prontuários. Isso também é grave”, diz.
Segundo ele, entre as mulheres com notificação no Sinan, o abuso sexual é a violência mais frequentemente relatada. Em grande parte dos casos o abusador é um membro da família ou alguém próximo à vítima.
“Com esse mapeamento, é possível voltar ao prontuário das mulheres que ainda não têm notificação de violência no Sinan e estimar a subnotificação”, explica Torrent.
A assistente social Maria das Graças Ferreira da Silva, que atua na atenção primária do Recife, conta que muitas vezes a violência contra a mulher é velada. “Começa com a violência psicológica. A mulher é tratada de forma agressiva, depreciativa, o que vai minando a sua autoestima.”
Maria das Graças diz que muitas vezes os agentes comunitários de saúde têm informações sobre casos de violência mas temem notificar o abuso porque eles próprios vivem nas comunidades onde atuam e também podem ser vítimas. “Mas não tem como não notificar, fingir que não está acontecendo.”
Para Luciana Albuquerque, secretária municipal da Saúde de Recife, a questão da segurança é complexa. “Muitas vezes, o marido é o agressor e ele sabe que a mulher vai à unidade de saúde, ele conhece os profissionais da unidade.”
Ela diz que o estudo vai possibilitar que a gestão pense em estratégias de sensibilização desse profissionais para manejar melhor esses casos.
O próximo passo será a criação de um painel com o perfil de todas as mulheres onde será possível saber, por exemplo, quais são os bairros do Recife onde as vítimas de violência não estão sendo identificadas e priorizar a abordagem dos profissionais com treinamento e capacitação. Cerca de 460 dos 3.000 profissionais na atenção básica já foram treinados com esse objetivo.
O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.
Por Jornal de Brasília
Foto: Divulgação Sesau Recife./Divulgação Sesau Recife / Reprodução Jornal de Brasília