Profetizada no sonho de Dom Bosco, Brasília tornou-se um centro espiritual

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Desde a concepção em forma de sonho, Brasília carrega consigo um legado espiritual e holístico. No DF, a capacidade de acolher tipos variados de religiões é pujante e conquista pessoas de todo o Brasil. Hoje, o Correio revela os princípios por trás desse sucesso.

Bem antes de as máquinas rasgarem o Cerrado e de o concreto armado dar forma aos palácios de Oscar Niemeyer, existia uma Brasília onírica. Profetizada no sonho de Dom Bosco, entre os paralelos 15 e 16, surgiria a terra prometida. E assim se deu. Abrigada no Planalto Central, a capital federal prospera repleta de contradições: a concretude e a leveza da arquitetura; a riqueza e a miséria do povo; a seca implacável salpicada de ipês floridos; a religiosidade e o misticismo… Tudo caminha de mãos dadas.

Ao longo dessa semana, o Correio pegou carona na história e conheceu de perto um pouco mais do lado místico do Distrito Federal. A reportagem colocou o pé na estrada rumo à Cidade Eclética; caminhou sobre o piso em espiral na pirâmide do Templo da Boa Vontade; e experimentou a quietude do Templo Budista. As multiplicidades de características das crenças professadas na capital do país — que, hoje, reúne praticantes de várias delas — você vai conhecer nestas páginas.

Fraternidade quase utópica

É manhã de clima ameno no Distrito Federal, no dia em que o Correio visita a Fraternidade Eclética Espiritualista Universal (Feeu). No caminho até lá, em meio à vegetação distante, pode-se perceber a sede do local nascer ao longe, com tons de rosa em destaque, devido ao cenário de seca no Cerrado. Para algumas pessoas da comunidade, o primeiro passeio ao endereço foi motivado pela fé. “Estava doente, e vim buscar ajuda. Consegui melhorar com eles (integrantes da comunidade) e decidi ficar”, resume uma das moradoras do local. O relato é semelhante ao de um homem sentado em frente ao Hospital da Cidade Eclética. “Estava doente. Aqui, curei-me e quis ficar”, comenta.

O local foi idealizado no sonho de Yokaanam. Em 1946, ele criou a Feeu, na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro. Dez anos depois, em 31 de outubro, cerca de 200 famílias partiram em peregrinação rumo ao Planalto Central, com objetivo de fundar a comunidade espiritualista. Eles chegaram ao destino em 4 de novembro de 1956. Nascia, então, a Cidade Eclética, em Santo Antônio do Descoberto (GO), a 60km do centro de Brasília. A inauguração ocorreu em 1960.

Com aproximadamente 300 moradores e 42 famílias institucionalizadas, a Feeu tem uma dinâmica própria, com escola, hospital e mercearias. A chegada da reportagem é anunciada a um dos representantes da Cidade por um alto-falante usado como meio de comunicação no local. “Nossa comunidade é pequena e, assim, conseguimos nos informar mais rápido. Antes, não havia celular e, pelo rádio ou alto-falante, podemos avisar sobre a chegada de alguém ou dar uma notícia importante aos moradores”, explica Oriana, 62 anos, nascida no endereço da fraternidade.

Lá, cada um tem um papel a assumir: “Da vassoura ao altar”, explica Silvain, 40, um dos porta-vozes do grupo. “Aqui, ninguém é melhor que o outro. Todos desempenham uma função, que muda de acordo com a necessidade. A pessoa começa servindo e termina servindo. Quem serve no altar, por exemplo, não larga a vassoura”, completa.

Para conhecer a proposta do local, o Correio visitou o Templo da Cidade. A equipe de reportagem tirou os sapatos, em sinal de respeito, e visitou o ambiente, que se assemelha a um mundo imerso em paz. Por toda parte, há múltiplos símbolos religiosos. “Recebemos as pessoas de acordo com a fé que ela tem. Seja kardecista, católico, protestante ou umbandista. O que Yokaanam desejava era construir um lugar de armistício, livre dos armamentos e dos conflitos religiosos, onde todos pudessem conviver em paz e realizar o trabalho fundamental de servir o outro”, explica Silvain.

Mesmo com a proposta de acolhimento da Feeu, ele menciona o principal desafio. “Existe certa nebulosidade que causa um afastamento natural, pois muitos não compreendem o que acontece aqui. Mas a verdade é que temos zelo pelos nossos valores. Buscamos viver a realidade sagrada, promover a reforma do homem, tornando-nos humanizados, e a unificação dos credos. Vivemos quase uma fraternidade utópica, principalmente porque servimos com amor. Esse servir por amor, é o segredo”, revela.

Para saber mais

Cidade Eclética

É possível marcar uma visita e fazer doações para a comunidade pelo link: feeu.org/contato.

Templo da Boa Vontade

As doações podem ser feitas pelo site lbv.org ou por transferência bancária com PIX, pela chave: pix@lbv.org.br. Para acompanhar o Instagram do TBV, acesse: @templodaboavontadetbv.

Cerimônia Obon do Templo Budista da Terra Pura

Quando: hoje, das 8h às 11h30, com participação especial do Mestre Woo
Transmissão: pelo canal da PHU Praça da Harmonia Universal no YouTube
Outras atividades: meditação lunar (toda sexta-feira, às 19h30)

Espiritualidade conectada ao amor

Inaugurado em 6 de outubro de 1973, o Templo Budista da Terra Pura leva adiante propostas voltadas ao amor, à compaixão e à sabedoria. Em tempos de crise, esses três pilares servem como guia a muita gente, por ajudarem na superação das perdas e das dificuldades advindas da pandemia. O monge Sato, responsável pelo espaço religioso, fala sobre os limites para a saudade. “Ela não precisa ser algo mórbido. Serve para reviver as boas lembranças”, destaca.

Os degraus que levam ao templo foram decorados com corações de papel, em homenagem às vítimas da covid-19. Em um deles, há uma mensagem escrita com giz branco: “Quem partiu é o amor que fica”. “A pandemia pode servir como um tempo de reflexão do ser humano sobre o que realmente deve ser valorizado em nossa vida e sobre o quanto desrespeitamos a natureza”, observa Sato. Para o monge, o ser humano precisa entender que plantas e animais são seres sensíveis e que devemos nos conectar à espiritualidade. “Isso não significa assumir dogmas, e, sim, voltar-se para o amor, algo defendido não apenas pelo budismo”, destaca.

Filho de uma japonesa com um brasileiro de ascendência nipônica, Sato considera o Brasil — e, particularmente, o Distrito Federal — exemplo de acolhimento. “Aqui, encontramos essa reunião de pessoas. Brasília foi um sonho para Dom Bosco e muitos outros, como Juscelino (Kubitschek) e (Oscar) Niemeyer. Para minha geração, a cidade também era um sonho”, pontua.

Durante a entrevista, o cãozinho Yoshi, de 1 ano e 3 meses, acompanha de perto a conversa, deitado aos pés do monge por cerca de 40 minutos. Sato confessa que ele e o companheiro canino superam uma perda juntos: Pono, cachorro que viveu com o líder religioso por 15 anos, morreu na semana passada. “Durante a pandemia, foram os animais que puderam manter essa proximidade e calor humano conosco, em tempos de contato físico restrito. Meu objetivo é criar, ao redor do templo, um cemitério para as cinzas de pets”, planeja.

A pandemia tem afetado a rotina no templo, que diminuiu consideravelmente. Hoje, por exemplo, ocorre a última cerimônia Obon, para homenagear as vítimas da covid-19. Ao ar livre, no terreno que fica na Asa Sul, a Casa do Sino Grande está decorada com 1 mil tsuru — dobraduras em formato de pássaros —, que simbolizam saúde, boa sorte, felicidade e cura. A entrada no espaço é restrita a, no máximo, 150 pessoas por vez.

Atuação ecumênica e social

O Templo da Boa Vontade (TBV), conhecido como Templo da Paz, foi idealizado por Alziro Zarur e concretizado pelo jornalista José de Paiva Netto, que tinha a proposta de torná-lo um “agasalho para a alma”. Desde a inauguração, em 21 de outubro de 1989, as portas da sede estão sempre abertas, 24 horas por dia, na Asa Sul. A ministra Maria Helena da Silva, 48, frequenta o espaço há 32 anos e conta que, em algumas madrugadas, encontra pessoas em busca de acolhimento.

Integrante da equipe do TBV, Maria Helena detalha um dos principais atrativos do templo. “Temos a espiral, que é a Caminhada Ecumênica, na qual a pessoa segue um caminho no granito preto, no sentido anti-horário. Esse é um movimento interno, de busca e reflexão interior. Quando chegar ao centro, o visitante estará exatamente sob o Cristal Sagrado e encontrará uma placa de bronze, que simboliza a descoberta da luz. Já o caminho de cor clara, no sentido horário, representa a trilha iluminada”, explica.

O templo foi construído sob uma simbologia especial, com múltiplos de sete: a pirâmide tem sete faces, 21 metros de altura e 28 metros de diâmetro; o cristal puro, localizado no topo da estrutura, pesa, aproximadamente, 21kg. Antes da pandemia, cerca de 1 milhão de peregrinos visitavam o local anualmente. Parte dessa popularidade vem do respeito aos diversos credos. “Muitas vezes, observo a pessoa fazer a Caminhada Ecumênica, e elas adotam sempre um comportamento singular. Alguns juntam as mãos, outros as estendem para o alto ou seguram seus terços. Aqui não há distinções”, diz Maria Helena.

Em 2008, o TBV foi elencado como uma das Sete Maravilhas do Patrimônio Cultural Material de Brasília pelo Bureau Internacional de Capitais Culturais Xavier Tudela. Além do aspecto espiritual, há um braço social, por meio dos trabalhos promovidos pela Legião da Boa Vontade (LBV). Atualmente, os projetos atendem, diretamente, cerca de 1 mil famílias do Distrito Federal. Do começo da pandemia até este mês, a instituição doou 7 milhões de quilos de alimentos, produtos de higiene e de limpeza a moradores de 285 cidades brasileiras. Até o momento, essa é a maior campanha humanitária do grupo em 71 anos de atuação.

Paulo Araújo, responsável pela gestão social, explica que os obstáculos da crise sanitária não cessaram. “Atendíamos pessoas em vulnerabilidade desde antes da pandemia. No entanto, quando ela começou, quem recebia nossas cestas (básicas) como complemento passou a depender totalmente delas para sobreviver. E os que estavam em uma situação delicada passaram a vivenciar algo ainda pior”, observa.

Além de distribuir alimentos, o grupo acompanha famílias oferecendo atendimento psicológico ou espiritual e tem um programa para inserir jovens de 14 a 24 anos no mercado de trabalho. “Muitas vezes, o salário que eles recebem nesses serviços é a única fonte de renda da família inteira. Percebemos o tanto que eles valorizam a oportunidade, porque recebemos um retorno muito positivo das empresas. Eles se dedicam”, comenta Paulo. “Mas nosso desejo era conseguir ajudar bem mais”, completa.

Colaborou Adriana Bernardes

Por Edis Henrique Peres do Correio Braziliense com informações de Sandra Barreto da Gazeta do DF

Foto: Minervino Junior/CB