Você sabe se uma criança tem DNA brasiliense se ela veste camiseta do Verdurão, brinca com as bonecas convidando para passear no Eixão ou pede para comemorar o aniversário no Beirute. Eu me orgulho de ser mãe de duas assim. E tudo acontece de forma espontânea. De repente, sem qualquer indicação, uma está perguntando para a boneca se ela não gostaria de uma volta na pista que se fecha aos domingos para dar lugar aos pedestres, enquanto a outra decide que um dos bares mais tradicionais da cidade é o melhor local para celebrar a nova primavera com um almoço em família. Não poderia ser diferente, afinal, filho de peixe, peixinho é. Mas vê-las crescer cercadas dessa conexão com a cidade é motivo de muito orgulho.
Este mês foi tempo de se aprofundar um pouco mais na Política Nacional Integrada da Primeira Infância, recém-estabelecida pelo governo federal. É um marco para a proteção das crianças no país, em especial aquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade. Um ponto em especial me chamou a atenção, que é o fato de o documento jogar luz sobre a importância do cuidado com quem cuida. Se crescemos ouvindo o famoso ditado “na minha época era assim e eu sobrevivi” é porque faltou, e ainda falta, no país que essa seja uma preocupação verdadeira e que integre as políticas públicas.
Quando senti na pele as dificuldades de maternar na sociedade em que vivemos hoje, percebi o quanto essa dimensão era tão essencial quanto negligenciada. Para se ter noção, nem o nosso vocabulário evoluiu a contento ainda. Ao que escrevo essas linhas, o corretor de grafia sequer reconhece a palavra maternar, que certamente será sublinhada mais uma vez agora, com uma linha vermelha espessa apontando o pretenso erro da cronista.
Sem que haja um ambiente favorável, com alimentação e saneamento adequados e uma rede de apoio que precisa se estender ao sistema público, é quase impossível cuidar das crianças com a atenção e o carinho necessários. Na primeira infância, a tarefa se torna ainda mais desafiadora, diante da privação de sono e da necessidade de monitoramento em tempo integral das ações daquele pequeno ser humano repleto de descobertas a encarar. Assim, a resiliência dá lugar às saídas mais rápidas ou mais cômodas: a violência ou o uso de telas. Nenhuma das duas trará benefícios, muito pelo contrário.
Quando em vez de jogar no celular o game do momento minha filha se senta à mesa do Beirute e pergunta para a boneca se ela quer dar um passeio no Eixão, é porque tive o privilégio de ser cuidada para que pudesse retribuir e bem cuidá-la também. E, aí, o DNA brasiliense entra como um detalhe que faz toda a diferença em nosso dia a dia e nos deixa orgulhosos das escolhas ou mesmo das desistências ao longo do caminho.
Por Gazeta do DF
Fonte Correio Braziliense
Foto: Carlos Vieira/CB/D.A Press