Dia das Mulheres: os desafios de pôr uma mulher no mundo

Celebrar o Dia das Mulheres é também refletir sobre o desafio e a responsabilidade de criar meninas fortes, conscientes e preparadas para um mundo onde elas possam se tornar mulheres plenas, livres de preconceitos e com todas as oportunidades que merecem

“Não se nasce mulher, torna-se.” A frase, dita pela filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir, expressa que ser mulher é um processo de aprendizado e construção. Mesmo que nenhuma nasça com uma identidade pré-determinada, afinal, essa é definida tanto pela essência de cada indivíduo quanto pelas influências que recebemos da família, sendo ainda moldada com o que o mundo impõe, as meninas, desde a infância, carregam o peso de se tornarem grandes mulheres com certos comportamentos, papéis e expectativas ao longo da vida.

A infância é o ponto inicial na construção de futuros bons cidadãos, quando cada experiência e influência molda a identidade dos pequenos. E os pais e familiares carregam uma grande missão: nesse período de aprendizado é que a criança absorve valores, informações e diferentes perspectivas do mundo ao seu redor. “Na infância, recebemos uma família, um nome e sobrenome e um lugar no sistema familiar. Portanto, a menina irá se identificar com o padrão de crenças e valores, construindo assim sua autoimagem e autoestima. É sempre a partir de informações que recebe da família que a criança poderá se reconhecer como indivíduo”, explica Andréa Vicente, psicóloga clínica e especialista em terapia familiar sistêmica.

Para a psicóloga, as escolhas e as decisões que serão tomadas ao longo da vida estarão diretamente conectadas ao que a menina aprendeu sobre si mesma e ao entendimento do seu papel no mundo. “É importante conhecer a filha e considerar o que ela é, o que traz em si, quais são suas características como pessoa, seus pontos fortes e aqueles que precisam de ajustes e maior orientação de seus pais. Acreditar em suas potencialidades e possibilidades, apoiar suas decisões, oferecendo seus exemplos e estabelecendo, sempre, um espaço para troca de experiências são pontos fundamentais”, completa.

E o papel da mãe é ainda mais importante nesse processo. Para Sigmund Freud, fundador da psicanálise, toda mãe é, para a filha, um modelo e a primeira referência de figura de mulher. Ela não é apenas uma mãe, mas é, também, a professora da vida, que transmite valores, comportamentos e mostra o melhor caminho a ser trilhado. Já a filha aprende, muitas vezes sem perceber, com as ações da mãe, e em todo esse processo, ela se torna a principal fonte de inspiração e o verdadeiro espelho de como acriança irá se enxergar e se expressar como mulher.

Mãe de casal, maternidades diferentes

Ser mãe, por si só, já é uma tarefa desafiadora e de muita responsabilidade, mas ser mãe de menina torna essa tarefa duas, três, quatro vezes mais desafiadora e com mais responsabilidades. A luta diária de ser mulher é grande, e de criar outra é maior ainda.

Silvia de Almeida, psicóloga especialista em neuropsicologia, vive uma experiência dupla na maternidade: é mãe do João, 14 anos, e da Olívia, 12.“Desde que decidi ser mãe, sempre pensei que, independentemente do gênero dos meus filhos, eu iria educá-los para serem independentes e autônomos. Com João, meu primogênito, naturalmente foi assim, mas com Olívia acabou sendo muito mais intencional”, revela, considerando como a responsabilidade se aplica no cotidiano.

A psicóloga conta que não esperava que a criação fosse tão diferente de um filho menino para uma filha menina. “Eu não achava e não planejava que fosse ser diferente até Olívia nascer. Não chegou a ser um choque, mas percebi que, por ter sido criada em um ambiente machista, eu me empenhei para educá-la sem esse viés, porque não queria isso para minha filha”, diz.

Segundo Silvia, ela procura ensinar os mesmos valores para João e Olívia, mas tem um cuidado extra ao educar a filha para que ela não dependa de qualquer pessoa que possa impedir seus sonhos e projetos de vida. Aspecto que, embora aborde com João, talvez não o ensine com tanto afinco, por achar que a sociedade já coloca os homens em condições vantajosas em relação às mulheres. Além disso, ensina a adolescente que elas são resistência e que não devem fugir das lutas em que acreditam.

Sílvia explica que reconhece as incidências do assédio e das violências contra as mulheres e que fica muito impactada e triste por isso. “Eu nunca sofri assédio ou violência de gênero. Pontualmente, acredito que foi porque desde pequena minha mãe já nos ensinava, eu e minhas irmãs, a identificar e dar os limites necessários nos ambientes que transitamos” reflete.

Durante sua trajetória, o que mais a incomodou foi o fato de ter tido mais dificuldade de ser ouvida. Por esse motivo, não quer que sua filha passe pelo mesmo. “Sabe aquele preconceito de que mulher é burra ou não sabe de nada? Então, por isso eu sempre tive em mente que eu precisava estudar mais, ler mais para poder argumentar, ser ouvida e ter credibilidade. E percebo que faço isso com Olívia, cobro que ela estude muito, saiba do maior número de assuntos possíveis para ter uma opinião segura, para conseguir construir uma crítica sobre os mais variados assuntos”, comenta.

Ela também ensina a filha a se impor diante do irmão. “Eu estou sempre me empoderando, sempre marcando meu território, e também faço isso com a Olivia, até com o irmão dela. Eu falo pra ela: ‘Não, Olivia, você não pode deixar o João fazer isso com você.’ Aí ela vai lá, briga com o irmão e diz: ‘Você não tem direito de fazer isso comigo'”.

Sua arma para blindar Olivia dos obstáculos da sociedade é o conhecimento. Silvia expõe que ensina diariamente sua filha a ser independente e a não depender de ninguém. “Digo sempre a ela que é essencial saber fazer as coisas sozinha, que não se deve depender de ninguém, especialmente dos homens. Eu sempre falo isso para a minha filha: você tem que ser autossuficiente, e é por aí que a vida deve seguir.”

Pequenas grandes mulheres!

Educar meninas significa prepará-las para enfrentar um mundo cheio de desafios. E quando essa missão precisa ser multiplicada por três? Assim aconteceu com Carol Mocellin (@trigemeasmocellin), mãe das trigêmeas Angelina, Betina e Helena, de 4 anos. “Descobrir que teria três meninas de uma vez foi o susto mais incrível da minha vida. Já senti a responsabilidade três vezes maior em ser minha melhor versão de mãe e mulher, pois eu estaria formando futuras mulheres. Desde sempre, quis fazer o máximo por elas, porque desejava vê-las se tornando mulheres que farão a diferença na geração delas, e pessoas que viverão a essência verdadeira da mulher”, conta.

As crianças, naturalmente, são curiosas e cheias de dúvidas. Para Carol, o mais importante é passar confiança, proporcionar um ambiente acolhedor, no qual elas se sintam à vontade para falar livre e espontaneamente. “O segredo é estar sempre presente e mostrar interesse para ouvir com atenção, preparando-as para enfrentarem o mundo de forma segura.”

Com isso, é fundamental descobrir maneiras adequadas de tratar dos mais diversos assuntos, de acordo com a necessidade e o nível de maturidade da criança para o aprendizado. “Existe um tempo certo pra tudo, e em cada fase da vida delas haverá algo para ensinar, para corrigir. Desde sempre, eu não perco a oportunidade de ensinar, de responder a uma pergunta que elas fazem, que são muitas. Eu, como mãe, preciso ensinar da forma certa, de acordo com nossos princípios e valores. Se nós, mães, não ensinarmos, alguém vai ensinar, e aí está o perigo”, acredita Carol.

Com um perfil nas redes sociais para compartilhar sua rotina com as meninas e os desafios da maternidade, Carol conta que, mesmo criando conteúdo, suas filhas não sabem o que é o mundo digital, e com isso fica mais fácil protegê-las. “Algumas pessoas nos encontraram na rua e minhas filhas não quiseram tirar foto, conversar ou abraçar. Não forço elas a nada, muito menos abraçar quem não querem. São crianças, e respeito a vontade delas. Depois disso, tentaram me ofender por mensagem.”

De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, os pais que desejam compartilhar fotos e vídeos de seus filhos na internet devem tomar medidas protetivas para garantir que o conteúdo não seja usado para fins maliciosos. E não é diferente com a mãe das trigêmeas, em que esse cuidado não se restringe apenas ao ambiente virtual: “Eu tomo muito cuidado com tudo o que publico delas. Não posto sem roupas, tenho o cuidado de não postar de calcinha nem tomando banho. Eu já sou uma mãe muito cuidadosa com relação a isso no dia a dia mesmo, não só na internet. Hoje, precisamos ter cuidado com tudo.”

Não esquecer quem você realmente é

A relação entre mães e filhas desempenha um papel crucial na construção da identidade feminina, especialmente em uma sociedade que, historicamente, impõe desafios às mulheres. No livro O que quer uma mulher?, lançado no Dia Internacional das Mulheres, a psicóloga e terapeuta Rosângela Macedo reflete sobre como o patriarcado moldou essas relações e impactou a forma como as mães criam suas filhas.

Ela explica que, ao longo dos séculos, o patriarcado dominou as estruturas sociais, estabelecendo regras e leis que oprimiram a energia feminina. “Só para você ter ideia, o patriarcado é dominante há, no mínimo, quatro mil anos. As leis, as regras, tudo o que a gente conhece é regido por essa estrutura”, afirma.

Como consequência, muitas mulheres passaram a imitar comportamentos masculinos. “As mulheres, para se sentirem parte do mundo, passaram a imitar o comportamento masculino para serem aceitas e fazerem parte do mercado de trabalho. O mínimo de respeito que uma mulher precisa ter, ela precisa imitar o comportamento masculino para conseguir”, pontua.

Esse processo reflete diretamente na criação das filhas. Segundo Rosângela, muitas mães não possuem uma referência forte do feminino para transmitir, o que pode dificultar a construção da identidade das meninas. “Como as jovens, as filhas vão lidar com esse espelhamento com o feminino se essa mãe não tem isso também para dar?”, questiona.

No livro, ela aborda como a maternidade, ao longo da história, foi vista como a principal função da mulher, fazendo com que muitas mães perdessem outras formas de se reconhecer no mundo. Isso pode levar à chamada síndrome do ninho vazio, quando os filhos saem de casa e a mulher se vê sem um propósito além da maternidade. “Às vezes, algumas mães ficam tão em função da maternidade, porque trouxeram isso para as mulheres de uma forma muito cruel, que, quando chegam à melhor idade e perdem os filhos, ficam desesperadas, porque não sabem que outro lugar no mundo podem ocupar além da maternidade”, observa.

Para Rosângela, é essencial resgatar a energia feminina e fortalecer o papel das mulheres para além da criação dos filhos. Antes de serem mães, elas são mulheres — e já foram filhas um dia. “No meu livro, eu trago uma reflexão do quanto as mulheres precisam resgatar o empoderamento dessa energia psíquica feminina. Porque, antes de ser mãe, nós somos mulheres”, conclui.

Criando uma adolescente!

A adolescência é um período de intensas mudanças para as jovens, e muitas vezes, a relação com as mães se torna um ponto de equilíbrio entre autonomia e proteção. Nesse momento delicado, a empatia desempenha um papel fundamental. Mães que conseguem se colocar no lugar das filhas, ouvindo sem julgar e oferecendo apoio emocional, podem fortalecer essa conexão e ajudaras jovens a se sentirem mais seguras em suas escolhas.

Além disso, a orientação sobre os planos futuros — como carreira, educação e vida pessoal — é essencial. Quando mães se envolvem de maneira ativa e construtiva, com compreensão das necessidades de cada fase, elas podem ser uma verdadeira fonte de inspiração e guia, preparando suas filhas para os desafios que virão.

Thaynara Cristina dos Santos Lima, 37, deu à luz Sophia dos Reis Lima, 14, aos 23 anos, e conta que educa a adolescente à base de respeito. Entretanto, sempre pontua que nunca haveria espaço para ingenuidade. “Precisamos saber respeitar o próximo, deixar claro que somos mulheres boas e honestas, porém, não bobas. Não existe essa ideia de que, por sermos boas e termos princípios, somos ingênuas ou tolas. Somos justas, e muito justas, em tudo o que fazemos, e assim procuramos levar as coisas com leveza”, expõe.

A mãe explica que a relação das duas é forte. Ambas são comunicativas e isso ajuda em cada fase diferente que a estudante passa. “Nós conversamos muito, e ela adora isso. Por esse motivo, já existe nela uma liderança muito forte. Mas o que a gente ensina é sempre ter carinho e educação, tanto na forma de falar quanto na forma de agir”, comenta Thaynara.

Para a gerente comercial, o estudo é o caminho para as meninas se tornarem grandes mulheres. “Sempre falei isso: uma mãe pode ser o que quiser, mas uma coisa que devemos oferecer aos filhos é a educação. Um bom estudo, eu acredito, faz toda a diferença”, reflete.

Cuidados

Sophia está em uma fase de descobertas, e Thaynara reconhece isso. Portanto, a mãe faz questão de estar antenada a todos os âmbitos da vida da filha. “Os filhos têm que ser acompanhados pelos pais. Eu sempre acompanho as amizades e as redes sociais, mas evitando a invasão de privacidade.”

E complementa: “Faço questão de saber o que está acontecendo, e isso faz toda a diferença na vida de um adolescente, especialmente quando ele está confuso, sem saber para onde vai. As fases da vida passam muito rápido, e os adolescentes de hoje em dia são extremamente acelerados”.

Thaynara acredita que Sophia é uma adolescente consciente e que nenhum estereótipo a definirá. “Aqui dentro de casa não existe essa ideia de que só porque ela é mulher não pode fazer o que os homens fazem. Acreditamos que qualquer um pode conquistar o que quiser, basta correr atrás do que deseja. O vitimismo aqui não tem espaço.”

Livros para as mães

– A prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações, de Valeska Zanello

Por que a queixa na esfera amorosa é uma constante na vida das mulheres, mesmo entre aquelas que estão solteiras? Por que a “beleza” é ressentida como um capital tão importante? E por que é tão comum mulheres “adotarem” seus parceiros, cuidando deles, por eles e para eles?. Para explicar essas questões, relacionadas às hierarquias de gênero,a autora propõe a metáfora da prateleira do amor.

– Para educar crianças feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie

Escrito no formato de uma carta da autora a uma amiga que acaba de se tornar mãe de uma menina, o livro traz conselhos simples de como oferecer uma formação igualitária a todas as crianças, o que se inicia pela justa distribuição de tarefas entre pais e mães. E é por isso que este breve manifesto pode ser lido igualmente por homens e mulheres, pais de meninas e meninos.

– Educar filhas fortes numa sociedade líquida, de Meg Meeker

Mesclando sua vasta experiência como pediatra com uma boa dose de bom senso, a autora explica, neste livro, os 11 passos necessários para que nossas filhas atinjam todo o seu potencial.

– O que quer uma mulher, de Rosângela Machado 

É um livro de histórias, histórias da alma humana. Histórias que retratam como a falta de amor e a exclusão dos sentimentos têm afetado os relacionamentos.

Livros para as meninas

– Gente pequena, Grandes sonhos: Malala Yousafzai, de Florencia Errecarte (de 5 a 8 anos)

O livro conta a história da defensora da educação e ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, Malala. Nascida em Mingora, Paquistão, seu pai decidiu que ela teria as mesmas possibilidades de um menino. A menina adorava estudar, mas um regime cheio de ódio tomou o poder e proibiu as meninas de ir à escola. Malala protestou, o que a tornou alvo de violência.

– Pequenas Grandes Sonhadoras: Mulheres visionárias ao redor do mundo, de Vashti Harrison (de 8 a 11 anos)

O livro conta as histórias de vida de 35 mulheres visionárias, entre elas inventoras, artistas e cientistas, Pequenas Grandes Sonhadoras inspira e ensina ao mesmo tempo.

– Histórias de Ninar Para Garotas Rebeldes, de Elena Favilli e Francesca Cavallo (para adolescentes)

É um livro com 100 histórias sobre a vida de 100 mulheres extraordinárias do passado e do presente, ilustradas por 60 artistas mulheres do mundo inteiro.

*Estagiárias sob supervisão de Sibele Negromonte 

Por Luiza Marinho e Loanne Guimarães do Correio Braziliense

Foto: Ed Alves CB/DA Press / Reprodução Correio Braziliense