Isaac Augusto de Brito Vilhena de Morais tinha 16 anos e uma vida inteira. Filho, irmão e amigo querido, ele foi morto na noite de sexta-feira (17), durante um assalto na entrequadra 112/113 Sul, quadra onde nasceu, cresceu e aprendeu a ser gente. A cena do crime: uma praça arborizada entre os pilotis da área nobre de Brasília.
Filho de Jane e Lucas Vilhena, o adolescente nasceu em São Paulo, mas se mudou para Brasília ainda pequeno, quando o pai, médico do Exército, foi transferido a trabalho. “Quando ele tinha uns três ou quatro anos, a família veio e acabou ficando. Gostamos da cidade e decidimos morar aqui”, contou Edson Avelino, 28 anos, irmão do adolescente.
No lugar onde brincava desde criança, Isaac teve a vida interrompida. O crime foi cometido por outros adolescentes, apreendidos horas depois, no Paranoá. A notícia devastou a quadra — e a cidade.
Menino de família
“Era um menino muito educado, muito amoroso, família mesmo”, disse Ana Morais, 25 anos, irmã do jovem. “Ele tinha um vínculo muito grande com a gente. Ele só me chamava de ‘irmã’, nunca pelo nome. Sempre queria que eu dormisse em casa, para passarmos mais tempo juntos”, relembra, emocionada.
Isaac estudava em um colégio militar e se preparava para se formar no ensino médio. “Ele queria passar na UnB, fazer curso na área de tecnologia, segurança da informação. Era muito inteligente, falava inglês fluente e já tinha feito uma viagem para Los Angeles”, contou o irmão Edson Avelino.
O jovem, que gostava de futebol e esportes coletivos, descia com frequência para jogar com os amigos. “Ele era muito querido por todos na vizinhança. Gostava de conversar, de ajudar, de estar junto. Tinha um coração puro, genuinamente bom”, lembrou Ana. “O Isaac sempre foi muito justo, fazia o que era certo, mesmo quando ninguém estava vendo”, contou.
Para Edson, a morte do irmão é uma dor que nenhuma família deveria conhecer. “Ele era abençoado. Tinha um futuro brilhante, que foi interrompido. Mas Deus sabe de todas as coisas. Peço oração pela minha mãe, pela nossa família e pelo Lucas, que sempre fez de tudo por ele. Isaac teve tudo o que os pais puderam dar: amor, apoio, educação. Ele foi muito desejado. Eu pedia muito um irmãozinho. Quando ele veio, foi uma bênção para nossas vidas”, afirmou Edson.
Emocionados, os pais de Isaac, Jane e Lucas Vilhena, não conseguiram falar com a reportagem.
Quintal coletivo
Brincar sob os pilotis dos blocos dos prédios faz parte da cultura de Brasília. O livre brincar sob o céu azul da capital federal é o orgulho de gerações que vivem na cidade. Isso ajuda a explicar o sentimento coletivo de perda. Isaac era um desses meninos típicos de quadra: cresceu entre árvores, risadas e o olhar atento da vizinhança.
A praça onde morreu era a mesma onde aprendeu a andar de bicicleta. “É difícil explicar para uma criança que o lugar que sempre foi de vida agora é lembrado por uma tragédia”, disse um vizinho, que preferiu não se identificar. “A 113 Sul sempre foi um espaço de convivência, um quintal coletivo. Ver essa cena muda a forma como todos nós olhamos para a cidade”, destacou o porteiro do prédio em que o jovem morava.
O episódio escancara não apenas a violência urbana, mas também as contradições sociais que afetam a infância. Os adolescentes apreendidos pelo crime têm idade parecida com a de Isaac. Deveriam estar na escola, ou jogando bola sob outros pilotis, e não nas ruas. “Quando meninos de 15 ou 16 anos estão cometendo infrações, algo falhou antes. Falhamos todos”, diz Ana, com a voz embargada.
O caso de Isaac reacende o debate sobre o direito ao brincar e à convivência comunitária. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante a todas as crianças o direito ao lazer, à convivência comunitária e ao desenvolvimento pleno. E também reconhece que adolescentes em conflito com a lei são sujeitos de direitos, não inimigos públicos.
Moradores prestam homenagens
“A brutalidade que presenciei é mais que um crime. É um espelho — da omissão, do descaso, da violência que atravessa todas as fronteiras da cidade. Pensei em Maria Cláudia, cuja memória nomeia o parque. Seu corpo, também jovem, foi enterrado dentro da própria casa por quem gozava da confiança da família. Duas décadas depois, outro corpo ainda mais jovem cai — não pela perversão doméstica, mas pela barbárie da violência e pela banalidade do mal. Um celular custa uma vida. A morte mora ao lado. Mora nas praças, nos parques, nas demoras inexplicáveis do socorro que nunca chega. Mora na ilusão de que vivemos numa bolha de conforto e segurança.”
Com as palavras acima, o morador Paulino Motter faz um relato aberto sobre o crime que presenciou no parque Maria Cláudia Dell’Isola, local aparentemente seguro onde, há duas semanas, sua filha de 12 anos brincava após a escola. Na noite de sexta-feira (17), ele voltava do trabalho, por volta das 18h30, quando uma jovem, em estado de choque, correu em sua direção anunciando que um rapaz tinha sido esfaqueado. Foi ele quem ligou para o 192 pedindo socorro.
Ontem, o clima na entrequadra 112/113 Sul, em Brasília, refletia essa consternação. O ponto onde o estudante Isaac Augusto, de 16 anos, foi esfaqueado durante um assalto, se transformou em um local de luto e homenagens. Moradores deixaram flores em memória do adolescente, que estudava no Colégio Militar de Brasília (CMB) e era conhecido pela simpatia e dedicação aos estudos.
O gesto de homenagem partiu de Pedro Santa Fé, 60, morador da 313 Sul, que, pela manhã, colocou flores no local onde Isaac caiu. Segundo ele, passou pelo local onde o jovem estava caído e viu a mãe e o irmão do estudante, que estavam “em um desespero incontido”. O gesto comoveu quem passava.
Mesmo os moradores que não conheciam o garoto estavam extremamente abalados. O grupo Tai Chi Brasília Viva pratica Tai Chi Chuan todos os sábados e, dessa vez, separou um momento da aula para fazer uma oração.
Entre os que visitaram o local estava Thaciely Prudência, cunhada de Isaac, que preferiu não dar entrevista por estar muito abalada, mas escreveu nas redes sociais: “Meu cunhado, isso foi uma tragédia.”
Comoção de vizinhos
Também presente na hora do crime, Joana Melo, 50, professora e moradora do Bloco F da 112 Sul, ainda tenta processar o que viu naquela noite. “Eu estava chegando no parque quando os meninos foram pedir ajuda. Eu estava entrando e um deles passou correndo por mim com as mãos cheias de sangue. Aí ele foi no bloco G pedir ajuda porque o menino tinha tomado a facada. Quando eu cheguei, perguntei o que aconteceu. Eles falaram que estavam jogando vôlei e tinham três rapazes assistindo, e que um dos rapazes pediu para o Isaac, a vítima, um sinal de Wi-Fi para rotear. O Isaac parece que negou, disse que tinha acabado. E aí, o rapaz decidiu tomar o celular dele. Ele saiu para tentar reaver o celular e tomou a facada”, afirma.
A professora, que mora há anos na região, contou que a sensação de segurança do local foi abalada. Além desse ocorrido, segundo ela, há duas semanas presenciou outro furto semelhante na entrada do parque.
O piloto aposentado Tomaz Oliveira, 76, ficou chocado com o crime, pois considera a quadra segura. “Eu moro aqui há 41 anos. A região é tranquila, o ambiente é bom, mas, infelizmente, aconteceu. O porteiro me contou que o menino era conhecido, morava aqui na região e frequentava o parque.”
Uma outra moradora, que preferiu não se identificar, destacou que Isaac era conhecido na região. “Esse menino morava aqui mesmo, no Bloco A. A gente viu o menino crescer aqui. Eu cheguei em casa por volta das 18h40, e disseram que ele reagiu e foi atrás de recuperar o celular. É triste, tem que ter mais iluminação. Adolescente, né? Tudo tão cedo.”
Outra moradora, também sem se identificar, desabafou sobre o medo que o caso trouxe de volta à comunidade. “Eu ando aqui ao redor do parque, então estou chocada. Fazia tempo que eu não tinha medo de Brasília, e fico começando a ter medo de novo. Meu marido disse: ‘Vamos ter que repensar como passear com os cachorros à noite’. E foi cedo, seis e meia da tarde. Eu fico chocada, por causa de um celular. Sempre falo para os meus filhos: se te pedirem o celular, entrega e corre. Mas é revoltante ver uma vida acabar assim.”
Repercussão nas redes
O Colégio Militar de Brasília publicou uma nota de pesar nas redes sociais. “É com imensa consternação que o Colégio Militar de Brasília comunica a notícia do precoce falecimento de nosso aluno Isaac Augusto de Brito Vilhena de Moraes. Não há palavras que possam, de fato, traduzir tamanha dor, mas, em meio à profunda tristeza dessa inesperada e avassaladora despedida, a memória do jovem Isaac não se apagará. Que nosso bom Deus, em sua infinita misericórdia, o receba em paz e possa confortar a família enlutada, com a qual todos nos solidarizamos”, escreveram.
As manifestações se multiplicaram nas redes sociais. “Era meu amigo de anos. Rezem por ele, por favor”, publicou uma colega. Outro escreveu: “Vai fazer falta demais… mesmo após a minha saída do Colégio Militar de Brasília para o de Campo Grande, senti sua falta, pois jogávamos basquete nos jogos internos. Além de excelente jogador, ele era um bom amigo. Que Deus conforte os corações dos amigos e familiares do nosso eterno amigo e aluno Vilhena.” Uma mãe de aluno do CMB acrescentou: “Não tem nem palavras para o que aconteceu. Estamos todos chorando muito, especialmente os alunos do CMB. Ele era da turma do meu filho.”
Enquanto a investigação segue na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), o local da tragédia se tornou um ponto de memória. Além das flores e das visitas, os moradores planejam uma manifestação no parque pelo ocorrido.
O velório de Isaac será realizado hoje, às 14h, no cemitério Campo da Esperança, capela 1.
“É inaceitável perder um menino assim”
Marquinhos, 15 anos. Tiago, 15. Maurício, 17… Ontem, o menino Isaac: 16 anos. Nomes de uma das maiores tragédias do Brasil, a violência urbana. Todos os anos, dezenas de milhares de famílias são devastadas. E a gente ainda se pergunta, por que tantas tragédias? Marquinhos era filho da Valéria: foi vítima na saída da escola. Maurício, era filho da Dona Fátima, meu irmão: roubaram a bicicleta. Tiago, era irmão do Raniére: roubaram um relógio. Inacreditável, Isaac morreu após o roubo de um celular.
Valéria dizia que a dor da violência parecia com um trator que avança sobre uma casa, e depois de destruir tudo, a gente volta e tenta recomeçar, colando os cacos.
Por conta do crime que destruiu nossa família no ano de 1999, tive a oportunidade de conhecer e conviver com outros familiares vítimas da violência. Foram muitos encontros, caminhadas, campanhas. Nossa família conseguiu ‘juntar alguns cacos…’ e aos poucos conseguimos seguir em frente. Mas a tragédia do Isaac, ontem, nos traz muitas lembranças difíceis, que não tem como colar. É inaceitável perder um menino assim. É ultrajante. Humilhante. Devastador.
Nesta mesma semana outros crimes bárbaros ocorreram nas cidades de Brasília! Todos nós estamos perdendo, todos os dias. Mais uma família perdeu um filho. Mais uma escola perdeu um estudante… Perdemos um vizinho, um amigo, nossa equipe ficou sem nosso jogador, uma empresa perde um trabalhador… e não só o presente, como também o futuro vai ficando assim, menor.
Ao tempo da morte do meu irmão, outras famílias em sofrimento decidiram se encontrar e se ajudar. Por mais de uma década caminhamos juntos, fizemos encontros, caminhadas, ações solidárias em defesa da vida, das vítimas da violência, em favor de ações e políticas públicas que valorizassem a vida, em especial, a Juventude, pois são sempre a maioria das tragédias. Em nossas ações sempre dizíamos: “Não queremos que ninguém sinta a dor que nos levou a fazer esta campanha.”
Hoje, a família do Isaac está devastada. Há sempre um sentimento de solidão de quem sofre. Sempre me perguntei, por que minha família foi escolhida? Gostaria muito que a mensagem que animou tantas famílias vítimas da violência a se encontrarem, de força, luta e união, pudesse tocar o coração daqueles que sofrem hoje. Gostaria de abraçar a família do Isaac e dizer que vocês não estão sós.
Que Deus possa acalmar e confortar o coração de todos, hoje e sempre, nesses dias difíceis, nesta nova caminhada.
Paz & Bem,
Francisco Régis Ferreira Lopes,
60 anos, Brasília-DF
Por Gazeta do DF
Fonte Correio Braziliense
Foto: Minervino Junior/C.B/D.A Press