O acesso a redes sociais por crianças e adolescentes é um risco que precisa ser combatido. Maria Pereira, 30 anos, viveu o lado mais trágico que as falhas no controle da distribuição de conteúdo on-line podem trazer. A filha Sarah Raíssa Pereira, de apenas 8 anos, inalou desodorante em spray ao tentar cumprir o chamado “Desafio do desodorante”, veiculado nas redes sociais. “O que eu deixo para outras mães é que, independentemente de horário ou controle, uma criança não deve ter acesso a telas. Elas não têm maturidade para entender o perigo que pode estar ali”, comentou Maria, em lágrimas.
O “desafio” consiste em incentivar os usuários de redes sociais a inalar o aerosol pelo máximo de tempo possível, o que pode levar à morte. Para além da tragédia, o caso escancarou uma realidade que muitos insistem em ignorar: a infância está sendo atravessada por conteúdos que não foram feitos para crianças.
Sarah teve uma parada cardiorrespiratória. Os médicos tentaram reanimá-la por cerca de 60 minutos, mas ela não resistiu. O quadro evoluiu para morte encefálica, e a morte foi confirmada pela equipe médica no sábado.
Maria Pereira ressaltou que Sarah usava o celular de forma controlada. O acesso era liberado apenas à noite, em dias sem atividade escolar, e nos fins de semana. “Ela estudava de manhã e ficava com o meu pai à tarde. A gente monitorava. No máximo, usava duas horas por dia. Não percebemos nenhuma mudança no comportamento dela, nada que indicasse o que viria”, explicou.
Segurança
Apesar dos cuidados, a falta de controle mais rigoroso na publicação e acesso a vídeos nas redes sociais foi o principal fator que levou à morte da criança, segundo a família. “Lá (no mundo on-line), é totalmente sem controle. As pessoas postam o que querem. Não tem aviso, não tem filtro, nada”, denunciou o pai, Cássio Batista, 33. A dor da perda se transformou em um apelo para outras famílias.
“Em quase todos os lugares, devemos comprovar nossa identidade para ter acesso a determinados serviços. Por que na internet deveria ser diferente? Vamos esperar outra morte acontecer para debatermos isso seriamente?”, perguntou.
Emocionado, Cássio pede justiça. “Ela queria ser médica, para salvar vidas. Agora está no céu. Se conseguirmos impedir que ao menos uma criança não tenha acesso a esse tipo de conteúdo, terá valido a pena”, destacou.
Consternação
A Escola Classe 6 de Ceilândia, onde Sarah estudava, retomou as aulas em clima de luto e consternação na manhã de ontem. A instituição exibia, em sua entrada, uma faixa com os dizeres “A Escola Classe 6 se solidariza com a dor da família de nossa aluna Sarah Raíssa”. Segundo a orientadora educacional Lilian Tamar Oliveria, o período de aulas foi dedicado a ouvir os estudantes, ainda abalados com a perda. “As professoras contaram que alguns alunos, confusos com a situação, comentaram terem visto o desafio na internet”, disse Lilian.
O objetivo da escola é planejar, o mais rapidamente possível, uma reunião com os pais e com instituições ou especialistas que possam abordar o tema da segurança na internet. “A gente se preocupa com os adolescentes, mas esquecemos que os pequenos, sempre muito curiosos, também têm, muitas vezes, acesso livre a conteúdos inadequados e perigosos”, enfatizou a orientadora.
Os professores se colocaram à disposição para ouvir os estudantes, com o fim de acalmá-los, entender o que sabiam sobre o caso e motivar uma reflexão acerca do ocorrido. Algumas crianças, ao notarem a movimentação da imprensa, relataram terem conhecido e convivido com Sarah. “Ela era muito alegre e, sempre que dava, brincávamos juntas”, contou uma colega. Outra, lamentou a morte da amiga e disse que sentirá saudades.
“Estão todos tristes e chocados por ser alguém tão próximo”, pontuou Lilian. “Os professores sempre buscam estar atentos a essas questões, mas quando ocorre um episódio como esse, ficamos com aquele sentimento de que poderíamos ter feito mais. Sentimos que não atingimos esse objetivo com sucesso, faltou algo”, lamentou a orientadora educacional.
Riscos
Outro caso violento recente que ocorreu no início de abril foi o estupro de uma adolescente de 13 anos em Águas Lindas. Para convencer a jovem a entrar no carro, o criminoso a convidou para participar de um desafio de experimentar bebidas, proposto nas redes sociais. Segundo a análise da neuropsicóloga e especializada em psicologia clínica pela Universidade de Brasília (UnB), Juliana Gerbrim, essas tragédias escancaram a vulnerabilidade de crianças e adolescentes diante de conteúdos virais nas redes sociais. “É um alerta doloroso sobre os riscos da exposição precoce e desassistida ao universo digital”, avaliou.
A especialista explica que, do ponto de vista psicológico, crianças e adolescentes estão em pleno desenvolvimento cognitivo e emocional. “Nessa fase, o cérebro é especialmente sensível a recompensas imediatas, ao pertencimento social e à validação externa, elementos que as redes sociais exploram com grande eficácia”, especificou. “Esses desafios virais ativam o sistema de recompensa cerebral, gerando uma sensação de excitação e aceitação quando o conteúdo é replicado ou curtido. Ver outras crianças realizando esses desafios cria um efeito de contágio social, impulsionado pela necessidade de pertencimento”, completou.
Juliana Gerbrim avaliou ainda que essa impulsividade natural, somada à ausência de filtros maduros de julgamento, torna crianças e adolescentes muito mais vulneráveis a comportamentos de risco. A profissional considera necessária uma intervenção com estrutura, limites e orientação ativa. “Eu acredito que não se deve proibir o uso das redes, mas educar para o uso consciente e seguro. É preciso acontecer um monitoramento ativo dos pais ou responsáveis, com diálogo aberto e constante, em conjunto com uma legislação eficiente, porque é justamente nesta idade que aprendemos o que é proibido”, detalhou. “Também é necessária educação digital nas escolas, desde os primeiros anos do ensino fundamental. Não é saudável manter as crianças completamente afastadas do mundo digital, mas é urgente garantir que elas não naveguem sozinhas num ambiente que, apesar de virtual, tem consequências muito reais”, concluiu.
Por Carlos Silva, Letícia Mouhamad e Mila Ferreira do Correio Braziliense
Foto: Carlos Vieira/CB/D.A Press / Reprodução Correio Braziliense