Guardiãs da agrobiodiversidade garantem a variedade alimentar para o futuro

Os agricultores que trabalham com a conservação de sementes contribuem para a proteção da natureza, a segurança alimentar de pequenos produtores e a geração de renda. Conheça as histórias de mulheres que se dedicam a essa atividade

Em meio à devastação ambiental e às mudanças climáticas, há quem se dedique a preservar a biodiversidade, gerando, além de ganhos à natureza, segurança alimentar de pequenos produtores rurais e fonte de renda. Os guardiões de sementes são agricultores que se dedicam à proteção dessas riquezas, tendo forte atuação na conservação local de recursos genéticos.

Pensando na troca de informações e experiências sobre o manejo das sementes entre os agricultores, um grupo de pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) organizou a “Oficina sobre Conservação da Agrobiodiversidade por Guardiãs(ões) em Bancos Comunitários de Sementes (BCS): Experiências, Diálogos e Demandas”. O mapeamento desses guardiões, na grande maioria mulheres, começou em março do ano passado. 

O evento contou com a presença de 11 técnicos de institutos federais e universidades e de 27 guardiões de todas as regiões do país, incluindo representantes de agricultura familiar, quilombos, indígenas, agricultura realizada em áreas urbanas e periurbanas e de outras comunidades.

Segundo Marília Burle, pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, as demandas dos agricultores — tradicionalmente pequenos, médios e familiares — são bastante parecidas, apesar de cada comunidade ter suas particularidades. “Eles (agricultores) buscam maior reconhecimento, acesso à terra e regularização do território tradicional. Além disso, lidam com o exôdo rural dos jovens, que buscam outras alternativas de vida, enquanto os guardiões estão envelhecendo e não há quem se preocupe em guardar aquela semente”, explica. 

Legado e cidadania 

O trabalho no campo sempre esteve presente na vida da assistente social Nazide Bentes, 56 anos, filha de agricultora e descendente da etnia indígena Mura. No entanto, com o envelhecimento da mãe, essa proximidade tornou-se uma necessidade, pois era preciso escolher uma sucessora para evitar a escassez de sementes na comunidade, localizada no município de Presidente Figueiredo, no Amazonas. “Meus 12 irmãos migraram para a cidade. Então, eu, que sou bastante parecida com minha mãe, me encarreguei de perpetuar esse legado, que assumo com muita honra e carinho “, conta. 

Na comunidade, conservam-se sementes de frutos nativos, como o guaraná e o cupuaçu, além de mandioca, milho, maxixe, jerimum e diversos tipos de castanhas. A diversidade de sementes permite, segundo Nazide, soberania e autonomia aos agricultores locais, garantindo alimentação e fonte de renda. “A partir da segurança alimentar, a gente consegue almejar um futuro melhor, porque um corpo desnutrido não consegue pensar em outra coisa a não ser em comida”, destaca a agricultora, que é presidente da associação de produtores rurais Grupo Esperança Orgânica (GEO). 

A feira organizada pelo grupo, que vende os produtos excedentes, reflete ainda a identidade da comunidade. “Quando chamamos o consumidor para dentro da floresta, ele não leva apenas um produto, mas também a história e a cultura de um povo. Nossa estratégia de desenvolvimento local é mostrar a esse público como o produto que ele consome é cultivado. Isso resulta na valorização da produção e daquela população”, completa Nazide. 

“A riqueza está na terra”

A engenheira agrônoma Danusa Lisboa, 36, faz parte da quinta geração presente e atuante no quilombo Mesquita, localizado na Cidade Ocidental. A comunidade, que conta com cerca de 3 mil habitantes, existe há 278 anos e se dedica à produção de mandioca, tangerina, feijão, milho, abóbora, doces, hortaliças e, principalmente, marmelada, “carro-chefe” do local. 

“A produção da marmelada me deu o start de que as sementes precisam ser conservadas, pois a terra é o que dá o nosso sustento, então, é importante guardar e preservar essa riqueza. Minha mãe conta que, no quilombo, havia um feijão de fava que hoje já não existe, por exemplo. Além dele, muitas outras sementes se perderam ao longo do tempo”, lamenta Danusa, também agricultora. 

No Mesquita, cada família é responsável por guardar suas sementes crioulas — próprias da comunidade, sem alteração genética ou utilização de produtos químicos, que passam de geração em geração. O processo de conservação é feito em garrafas pet, nas quais as sementes são armazenadas juntamente com cinzas, que evitam a deteriorização. A engenheira agrônoma lembra que o contato desses grãos com mudas híbridas, resultantes do cruzamento entre diferentes espécies, ameaça a pureza dos produtos locais.  

“Normalmente, começamos a plantar em outubro, quando se iniciam as chuvas. Em março, colhemos as melhores sementes e as guardamos para o plantio do fim do ano. Além da subsistência, também comercializamos os produtos, para garantir uma fonte de renda”, conta Danusa. A oficina da Embrapa foi, para ela, uma oportunidade de compartilhar novas técnicas de produção. “Algo que funciona em uma comunidade pode ajudar em problemas que estejam ocorrendo na minha”, completa. 

Ancestralidade 

A quilombola Andreia Ferreira, 35, é apanhadora de flores sempre vivas em Presidente Kubitschek, Minas Gerais, e pertence à quarta geração de “pai véio”, figura importante na história do quilombo Raiz e responsável por garantir o assento do grupo naquele território. Para ela, a conservação das sementes crioulas representa a memória de pessoas importantes na constituição da comunidade. 

Os apanhadores de flores sempre vivas são comunidades tradicionais que vivem na região da Serra do Espinhaço (MG) e têm na coleta de flores nos campos rupestres do Cerrado uma de suas principais atividades. “Colhemos mais de 300 espécies, entre flores secas, sementes e cipós. Minha avó, por exemplo, tem sementes de nove espécies de couve. Além de compartilharmos nossos produtos, trata-se de uma renda importante para as famílias, mantendo-as naquele território”, explica Andreia, que se tornou mestre em Ciências Orais por seu estudo sobre a língua do quilombo Raiz. 

A pesquisadora alerta que o acesso a essa área tem sido ameaçado pelo agronegócio. “Sem território, não teremos soberania nem reconhecimento, quem dirá sementes. Por isso, é essencial pensar na valorização desses agricultores, incentivando a juventude a ocupar esse espaço no futuro e perpetuar a conservação da biodiversidade”, declara. Em 2020, o sistema agrícola tradicional da comunidade foi reconhecido pela FAO — agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU) que luta contra a fome e a pobreza — como um dos Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (Sipam). 

Por Letícia Mouhamad do Correio Braziliense

Foto: Arquivo pessoal / Reprodução Correio Braziliense