O tema do aniversário de 52 anos do publicitário Rodrigo Lacerda, no próximo dia 22 de outubro, em São Paulo, já está definido: anos 1980. No cardápio, tubaína, bolo com glacê real e confetes de “chumbinho”, carne louca, Dadinho, Dipnlik.
O convite digital da festa traz imagens de fitas VHS, cassete, TV Hitachi, telefone de disco e aparelho de som 3 em 1. Tudo embalado ao som da banda inglesa New Order, arrematado por cores marcantes como pink, roxo, verde e amarelo limão.
Mas um dos presentes que o publicitário mais gostaria de ganhar vai ficar para o ano que vem: o relançamento da marca Kichute, a chuteira que estava nos pés da maioria dos meninos dos anos 1970 e 1980, que retorna como marca de calçados streetwear em 2023.
“Mal vejo a hora de voltar a usar, guardo até hoje um Kichute da minha infância”, diz ele, que já influenciou a filha mais velha, Pietra, de 17 anos, nos gostos da década (“Ela canta todas as músicas do Djavan e brincou de Fofolete”).
Ele pretende fazer o mesmo com o caçula, Tom, de 10 meses: o tema do primeiro aniversário do garoto será Scooby-Doo.
Assim como Lacerda, milhares de consumidores têm aderido ao revival dos anos 1980, valorizando a estética, a moda, a gastronomia, as músicas e, em especial, as marcas daquela época, que falam alto aos que têm mais de 40 anos, cujos costumes já foram taxados pelos mais novos de “cringe” (algo como “vergonha alheia” ou ultrapassado). Muitos que nasceram nos anos 2000, porém, não pensam assim.
“Eu adoraria ter vivido essa época”, diz Pietra Lacerda. “Tem uma vibe muito legal em filmes como Footloose e Dirty Dancing”, diz ela, referindo-se às produções dançantes de 1984 e 1987, respectivamente.
Esse entusiasmo contribui para o retorno de nomes como o próprio Kichute, Mobylette, Telefunken e uma série de brinquedos -Moranguinho, Fofolete, Aquaplay e Segure se Puder.
Mas será que basta colocar uma marca de 40 anos atrás para garantir vendas? E quem consumiu os produtos nos anos 1980 voltaria a comprá-los hoje?
BRINQUEDOS ANTIGOS REFORÇAM VÍNCULOS ENTRE PAIS E FILHOS, DIZ ESTRELA
A fabricante de produtos Estrela aposta que quem foi criança na década de 1980 vai levar os produtos para casa a fim de brincar com seus filhos ou sobrinhos.
“Desde o começo da pandemia, os pais passaram a ficar mais tempo em casa, em contato com as crianças”, diz Carlos Tilkian, presidente da Estrela. “É o momento de reforçar este vínculo, com os mais velhos trazendo brinquedos que ficaram na sua memória afetiva para dividir experiências da infância deles com as crianças.”
No ano passado, a Estrela relançou a Moranguinho. Criada em 1984, a boneca de vinil de 18 centímetros, com cheirinho de frutas, ganhou a companhia de Uvinha, Laranjinha e Maçãzinha.
Em março deste ano, foi a vez de a fabricante relançar a Fofolete, boneca de 9 centímetros que vem em uma caixinha de fósforos.
“Nossa expectativa era vender 350 mil unidades de Fofolete em um ano, mas conseguimos atingir essa marca nos seis primeiros meses”, diz Tilkian.
Já de olho no Dia das Crianças, em 12 de outubro, a Estrela relança seis brinquedos “vintage”: Aquaplay, Ferrorama, Lalá e Lulu, Rockita, Vertiplano e Segure Se Puder. Os produtos serão vendidos apenas nas lojas do seu maior parceiro varejista, o grupo Ri Happy, dono das redes Ri Happy e PB Kids.
“A decisão final de compra é dos pais, e acreditamos no poder das boas lembranças que esses brinquedos trazem.”
CALOI QUER ELIMINAR EXIGÊNCIA DE CNH PARA MOBYLETTE
Quem também trouxe um ícone oitentista este ano e vendeu acima do esperado foi a Caloi, com a Mobylette. A empresa lançou em março 2.000 unidades da nova versão do ciclomotor e até agosto já tinha vendido tudo ao varejo.
“Só não vendemos mais porque faltou componente, a maior parte dos fornecedores de peças está na China”, diz Marcos Ribeiro, gerente de inovação da Caloi.
“Nas primeiras 12 horas de venda do produto, em março, comercializamos as 20 unidades colocadas na plataforma do Mercado Livre”, diz ele. O preço sugerido está em R$ 9.199.
Diferentemente da antiga Mobylette, que alcançava 50 km/h e podia rodar até 60 km com 1 litro de gasolina, a versão do novo milênio é elétrica, com autonomia de 30 km e limite de velocidade de 25 km/h. Segundo Ribeiro, o modelo está em sintonia com as preocupações ambientais da nova geração.
“O foco do produto são as tribos urbanas, como skatistas e surfistas”, diz o executivo. Para 2023, a expectativa é vender pelo menos 4.000 unidades.
Para isso, a Caloi defende, via Abraciclo (Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares), uma mudança na legislação atual, segundo a qual é necessário possuir habilitação para dirigir um ciclomotor.
“A atual Mobylette está mais perto da ideia de uma bicicleta com acelerador, ela poderia trafegar em uma ciclofaixa”, diz Ribeiro. “É preciso existir categorias diferentes dentro do mercado de ciclomotores.”
Desde o seu aniversário de 120 anos, em 2018, a Caloi vem relançando produtos ícones, que marcaram época. Foi assim com a Caloi 10 em 2018, seguida pela mountain bike Caloi Aspen em 2019, e em 2021 pela Caloi Cross (semelhante à que aparecia no filme E.T., de 1982). Este último modelo, uma edição limitada, fez tanto sucesso que a empresa prometeu lançar uma nova versão em 2023. “Mas a Mobylette veio para ficar”, diz Ribeiro.
Quem também pretende ter vida perene é a marca Kichute. O nome da chuteira, que já batizou filme sobre a geração de 1970 louca por futebol (“Meninos de Kichute”, 2009), volta em 2023 pelo grupo Justa, dos empresários Adriano Iódice e Stephano Hawilla.
“A marca não vai voltar como uma chuteira, mas sim como um nome de moda streetwear, começando por calçados”, diz Solange Ricoy, sócia do Grupo Alexandria, consultoria de branding, pesquisa e inovação. Os produtos devem chegar ao mercado até julho do ano que vem.
A Alexandria acaba de lançar o movimento “Sociedade das Marcas Imortais”, com o objetivo de resgatar ícones de consumo brasileiros que sumiram dos pontos de venda. O primeiro será Kichute, marca da Alpargatas que foi licenciada pelo grupo Justa. O escritório de design Pharus e a rede de agências Isla também fazem parte da revitalização do nome Kichute.
“Existe uma molequice à brasileira em Kichute, um espírito que não se perde”, diz Solange. “É importante recuperar marcas que são parte da memória afetiva brasileira e que merecem ser conhecidas pelas novas gerações, elas integram o patrimônio cultural do país”. Segundo a executiva, o Justa também deve licenciar da Alpargatas a marca Bamba -outro tênis que era referência nos anos 1970 e 1980.
MARKETING DA NOSTALGIA TRABALHA A IDEIA DE QUE O PASSADO ERA MELHOR
Para Ana Duque-Estrada, professora de marketing do curso de comunicação e publicidade da ESPM, o resgate de marcas antigas remete aos efeitos de uma fotografia: um momento utópico, carregado de significados, em geral muito bons.
“Existem marcas que representam mais do que um produto: elas passam de geração para geração, no boca a boca, carregam um senso de pertencimento a uma determinada época ou comunidade”, diz ela. “Isso traz muita legitimidade para os dias atuais.”
Na opinião da especialista, mestre em Comunicação e Práticas de Consumo, o sentimento de nostalgia que ronda a sociedade dos anos 2020 não é uma novidade. “Muitas vezes o desencanto com o momento presente e a falta de perspectivas para o futuro remete a sociedade, automaticamente, para o passado, que se torna a época ideal”, diz. “Fica sempre a ideia de que, lá atrás, a vida era melhor.”
O ponto positivo é quando as novas gerações captam a essência do que foi bom e a trazem de volta aos dias atuais, seja no entretenimento ou no mercado de consumo. Segundo Ana, é o que explica sucessos que vão desde o retorno da saga Guerra nas Estrelas (lançada pela primeira vez em 1977) até as franquias com cara de “bolo da avó”, como Casa de Bolos e Vó Alzira.
“São coisas que te transportam para um momento de mundo muito bom.”
Por Folha Press via Jornal de Brasília com informações de Sandra Barreto
Foto: Reprodução/Jornal de Brasília